Com 10 minutos de atraso em relação ao horário combinado eu desço a trilha de pedra por entre uma densa vegetação amazônica em direção à margem do rio Negro, para embarcar na lancha ancorada no “precário” píer do Tropical Hotel. Para vencer a distância entre o cais mal aprumado e a margem sou ajudado por um local. O pulo, meio desengonçado, faz cair minha bandana azul e branca que estava sobre meu ombro. Comprei-a em uma das viagens ao exterior – acho que foi na Coreia do Sul – com a intenção de proteger os poucos fios de cabelo da ação opressiva do sol. Resigno-me, pois se estivesse com meu panamá o prejuízo seria ainda maior. Caminho uns 10 metros pelo píer e adentro na lancha Jaraqui, na qual sou gentilmente recebido por Ezequias que me deixa à vontade para tratá-lo pelo nome ou pelo cargo de comandante ou por piloteiro, como é mais comum por aqui.
Antes de qualquer coisa pergunto pelo colete salva-vidas. Avisto uma série deles no compartimento sobre minha cabeça, pego um e visto. Agora, sim a viagem pode começar. É que como não sei nadar, a experiência de singrar as águas marcadas por uma calma aparente só seria confortável cercado de segurança. Subimos cerca de 50 km rio acima em direção à Comunidade Santa Helena do Inglês, no Igarapé dos Ingleses.
O rio Negro impressiona pela “caudalosidade”, pela distância entre uma margem e outra, que chega a 30 km, e também por ser a principal ligação entre o interior e a capital amazonenses. Mas às 08h de uma manhã de sábado no dia 23 de maio, não temos muito tráfego no local. Apesar do barulho produzido pelo potente motor da embarcação, e o efeito do vento, Ezequias se esforça para me falar dos pontos de interesse. Aponta o Ariuau Tower, primeiro construído de olho nos turistas que valorizam a ecologia. Mostra a ponte estaiada, um tipo de construção que se tornou febre no Brasil a partir de meados da década de 1990, quando surgiu a primeira do tipo em uma linha de metrô da Zona Sul de São Paulo.
Observo tudo com especial interesse. Afinal, apesar de já ter viajado cinco vezes para Manaus esta é a segunda vez que entro mata adentro. Na primeira, em 2008, foi para visitar a Reserva do e Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Juma, também tocada pela Fundação Amazonas Sustentável (FAS) e que é o motivo desta minha estada na região.
Cerca de uma hora depois de deixar o cais do Tropical Hotel ancoramos no Igarapé. A visão impressiona pela beleza e rusticidade. Aliás, na Amazônia tudo é muito belo e muito rústico. O que nos garante um belo espaço para reflexão. Especialmente à noite, quando podemos enxergar o céu em todo seu esplendor. Ao chegar ao Igarapé sou recebido pelas primas Ozana Rodrigues de Mendonça e Lucimar Brito de Mendonça, as duas gestoras da Pousada Vista Rio Negro. Elas vivem no povoado e neste mês foram escaladas para tomar conta do empreendimento comunitário. “Essa unidade foi construída pela FAS dentro do programa de diversificação de renda”, diz Lucimar.
Dou de cara com um saboroso café da manhã que mistura as tradições locais (a tapioca) com os hábitos da cidade: suco de laranja, queijo e presunto. Caio de boca na tapioca e no suco de goiaba, plantados ali mesmo no Igarapé. Como uma meia dúzia e sigo para o quarto. Afinal, havia dormido somente 4 horas porque, devido à minha agenda em São Paulo, só consegui embarcar no voo das 23h.
Tirei um ronco e acordei no horário combinado de almoço. Tanto Lucimar, quanto Ozana se revezavam no esforço de me agradar e tentar fazer de minha curta estada um momento inesquecível. Não precisava muito. Afinal, a vista do local já representava o bálsamo necessário para quem vive em uma cidade árida como São Paulo.
Mas, além da vista im-pa-gá-vel, é importante destacar o profissionalismo do pessoal e o seu jeito e tocar o negócio. O almoço foi um matrinxã pescado ali perto pelos homens da comunidade, que vive um pouco do roçado, um pouco do turismo e majoritariamente da pesca. Uma chuva oportunista impediu que o peixe fosse colocado na brasa, na churrasqueira instalada perto do rio. Mas ele ficou igualmente delicioso assado no forno convencional. Arroz, feijão, farofa, mandioquinha frita e salada acompanharam aquele verdadeiro banquete amazônico. Tudo muito simples e muito saboroso.
Após o almoço, um cafezinho ajudou a fechar o apetite. Aí, fiz um tour pela comunidade ciceroneado por Ozana. Dava gosto ver a alegria com a qual ela me mostrava as casas simples, mas bem cuidadas. E os equipamentos, como o Centro Comunitário, a igreja e o sistema de energia solar, instalado pela FAS.
O equipamento foi vital para ajudar a garantir o suprimento de energia no período anterior à chegada do programa Luz para Todos. Até ali, as dezenas defamílias (que possuem um estreito grau de parentesco) eram atendidas apenas por um gerador a diesel que, por questões de economicidade, só era ligado à noite. A energia solar também possibilitou a compra de um freezer usado para estocar o peixe coletado nas pescarias. Com isso, a venda poderia ser mais bem programada sem a necessidade de “se livrar da mercadoria” a qualquer preço.
Ezequias, sempre solícito, me sugere um passeio a Tumbira, outro núcleo da FAS, no qual existe um complexo educacional, de pesquisa e de saúde e onde os moradores das vilas próximas têm a oportunidade de cursar o segundo grau. Lá, dou de cara com Roberto Brito de Mendonça. Sujeito corpulento, bem falante, líder comunitário, parceiro local da FAS e dono da charmosa Pousada do Garrido. Por lá já passaram desde jornalistas da National Geographic até alunos da prestigiada Escola Parque, do Rio de Janeiro.
Todos, sem exceção, ficaram encantados com o local e convidaram Roberto para ir a São Paulo ou ao Rio de Janeiro proferir palestra sobre sua atitude empreendedora. E pensar que até bem pouco tempo atrás este caboclo chefiava equipes para derrubada de árvores pela floresta adentro. Começou nesta lida aos 11 anos de idade. “Não me via como um desmatador, pois usava apenas motosserra e toda madeira que recolhia era para fazer barco”, conta.
O contato com Virgilio, a criação da RDS e as melhorias introduzidas paulatinamente na comunidade conquistaram Roberto para a causa. “Foi a primeira vez que mostraram preocupação genuína com o caboclo”, justifica. “A preservação da floresta começa no cuidado com os seres humanos que vivem nela. Hoje, sabemos que aquela forma de agir não era correta.” A “conversão de Roberto” e outros detalhes sobre o trabalho da FAS, criada por Virgilio você verá no livro que está quase saindo do forno. Aguarde.