Com uma canção também se luta, irmão! Parte 2

Leia a 2ª parte do livro que está sendo escrito por Dom Filó, como ficou conhecido no Rio de Janeiro o agitador cultural Asfilofio de Oliveira Filho. O texto narra os primórdios do Movimento Black e seus personagens, como Tony Tornado, Tim Maia e Wilson Simonal, e o trabalho das equipes de som, como Soul

O samba deixou de ser a referência para juventude negra. De fato, os jovens não deixaram de curtir suas tradições, apenas ele já não mais representava exclusivamente a identidade negra. O Movimento Black Rio era um repúdio direto contra a crescente presença da classe média branca em escolas tradicionais de samba. Historicamente, as escolas existiam especialmente para os negros de baixa renda. Além disso, muitos negros não gostaram da apropriação do ritmo samba como um símbolo nacionalista pelos ditadores militares no poder na época.

A origem do Movimento Black Rio começou com os DJs de música soul organizados em equipes, nos clubes dos subúrbios mais pobres do Rio de Janeiro. Essas festas realizadas nos finais de semana atraíam principalmente adolescentes afro-brasileiros e jovens adultos.

A significativa mudança de cena aconteceu quando Don Filó passou a produzir e realizar as Festas Soul no Renascença Clube , no final dos anos 60. O clube social foi fundado em 1951 visando a ascensão social dos afro-brasileiros à classe média – eram engenheiros, médicos, advogados e donas de casa, todos impedidos de participar do convívio social dos clubes da comunidade branca no Rio de Janeiro.

O preconceito racial era flagrante, refletido na não inclusão de negros em seus quadros de associados.

Em 1972, a proposta de Dom Filó foi oferecer uma opção de lazer para os jovens negros. Convenceu os sócios proprietários do clube a promover uma nova imagem, adequada aos anseios da juventude. O objetivo central era construir uma imagem tão distante quanto possível do estereótipo tradicional que associava negros à “marginalidade”, ao samba, com as misses negras sempre com a imagem atrelada à de “mulatas gostosas”, identidade depreciativa aos olhos da sociedade branca.

Noite do Shaft

A transformação do perfil tradicional do Renascença trouxe uma nova leva de frequentadores, membros, e ampliou a receita do Clube.

Na época, os organizadores das Festas Soul investiam fortemente em equipamentos de som e em propaganda. Dom Filó e o Renascença promoveram uma festa especial, chamada “Noite do Shaft”, onde toda a identidade visual foi criada, com base no estilo afro-americano.

Slides fotográficos eram projetados com artistas negros de filmes afro-americanos e do público que frequentava a festa. O resultado foi surpreendente, criando um clima de autoestima jamais visto entre milhares de pessoas que lotavam as domingueiras no clube.

Grand Prix e Cashbox. (A primeira parte está aqui). Confira!

O soul no Renascença Clube revolucionou a negritude, criando nova identidade aumentando a autoestima. A excelência musical atraía a grande maioria da juventude negra de toda a parte do Rio de Janeiro.

A característica musical tinha o comando de um DJ branco e judeu chamado Luiz Stelzer, mais tarde conhecido por Luizinho Disquejóquei Soul e os primos Nirto, Luizão e Dom Filó comandavam a festa, que se tornaria referência no Movimento Black Rio. Na pista reuniam-se excelentes dançarinos – Grupo Angola Soul, formado por jovens da comunidades do entorno do clube, entre eles Birão, Garim, Nadinho, Chevette, Renaud, Corcel, Bethinha, Salvador, Joinha, Ligeirinho, Bêbado, Mario SantClair, entre outros.

Instituto de Pesquisas das Culturas Negras

O grande sucesso deveu-se às articulações de vários jovens sócios do clube como Walney de Almeida, Edson Baiano, Maneca, Paulinho, Biriguda, Paulinho, Adilson Gato, Zé Carlos e Gaúcho, além de artistas como os saudosos atores Haroldo de Oliveira, Geraldo Rosa, Paulão, Marcos Vinícius, Cidinho. Sempre presentes: a atriz e cantora Zezé Motta, a manequim Veluma, o percussionista Chaplin, a cabeleireira Idalice Bastos, a Dai, Carlos Alberto Medeiros, Paulo Roberto – estes últimos atraíam a corrente intelectual que se fortalecia naquele momento com a formação da primeira entidade do Movimento Negro, o Instituto de Pesquisas das Culturas Negras, o IPCN (Saiba mais aqui).

Devido ao sucesso no Renascença, o Movimento Black Rio começou a se cristalizar ainda mais. Ele floresceu entre os negros de baixa renda que viviam nos subúrbios do Rio de Janeiro (zona norte).

O Movimento contribuiu expressiva e pacificamente para o combate ao racismo, dando um fim à forma servil que a cultura negra era explorada comercialmente pela classe dominante branca, a exemplo das escolas de samba, outrora dominada pelos negros e que até hoje encontram-se sob o domínio da sociedade branca.

O Soul não teve este caminho de domínio dos brancos. Existiram alguns donos de equipes brancos que se atrelaram ao movimento por interesse comercial e não pela causa negra, defendida por Dom Filó e Mr. Funk Santos. O convívio entre brancos e negros era harmonioso e respeitoso.

Por exemplo, Don Filó foi quem recrutou para DJ da Soul Grand Prix o judeu branco que ele conheceu em uma boate na Zona Sul do Rio, o Luiz Stelzer, que acabou se tornando um dos maiores discotecários do Movimento Black Rio.

A Soul Music crescia e era uma opção de lazer acessível ao público negro. Seus organizadores se esforçavam para torná-la cada vez mais atraente. Os DJs se empenhavam para exibir nas festas a maior quantidade de novos lançamentos da música soul, muitas das vezes dificílimos de conseguir no mercado nacional, já que a maioria dos discos chegava por difíceis vias de importação, tornando os vinis cada vez mais raros e caros.

Sempre que Dom Filó conseguia ter em mãos um novo álbum, ele costumava copiar e arrancar o rótulo, de modo que os concorrentes não poderiam identificar títulos e nomes de artistas, tornando assim um vinil exclusivo da equipe Soul Grand Prix.

Ditadura militar

Durante o regime militar brasileiro, “integração nacional” foi a ordem do dia. Esse lema oficial tornou inconcebível que os afro-brasileiros tivessem uma identidade cultural distinta da própria origem tupiniquim. Filmes como “Wattstax”, “Shaft”, a música de James Brown, Rufus Thomas, Aretha Franklin, Barry White, Stevie Wonder e outros não eram aceitáveis pelo sistema, uma vez que as autoridades consideravam que o estilo afro-americano deformava a juventude brasileira.

No entanto, a nova geração de afro-brasileiros que viveram na década de 1970 como Dom Filó prontamente reconheceu o Godfather of Soul, Mr. James Brown, como o grande Papa. A identificação com a nova atitude de resistência entre os jovens foi imediata. Não demorou muito para que esta juventude começassem a agir e se vestir como seus “irmãos e irmãs” norte-americanos cantando slogans como ” Black is Beautiful ” e ” I am Somebody”.

A popularidade do Soul cresceu muito, o que eventualmente impactou o desenvolvimento de novos artistas e um novo som. Uma nova geração de músicos que cresceu ouvindo uma diversidade de estilos musicais, conseguiu absorver a cultura soul.

Com isso, artistas locais da música soul conseguiram cativar o público com seus próprios álbuns – Gerson King Combo, Tony Tornado e Tim Maia são exemplos, além da pioneira Banda Black Rio.

Warner

A partir desta linhagem musical, o primeiro grande nome que vem à mente é o pianista Dom Salvador e a sua banda, Abolição. O senso estético refinado de Salvador influenciou toda uma geração de artistas e bandas. Um desses músicos foi o saxofonista e flautista Oberdan Magalhães. Ex-membro do Grupo Abolição, ele acabaria por fundar ao lado de Dom Filó a banda que se tornou a mais emblemática do período musical do Movimento: a Banda Black Rio.

Ela foi construída com a mesma forma da famosa banda americana Earth Wind and Fire. Dom Filó acabaria participando da produção do álbum da Banda Black Rio, tornando-se o primeiro produtor negro para a Warner Music no Brasil.

Para o desgosto total dos defensores puristas das tradições brasileiras, o Movimento Black Rio foi um sucesso estrondoso entre os jovens negros da periferia da cidade, da mesma forma que o rock influenciou a juventude branca na Zona Sul.

Nesse ponto, o estilo musical “Samba Soul” estimulou o interesse de gravadoras brasileiras, que de repente perceberam que os amantes da Soul Music poderia tornar-se um enorme mercado potencial. Inicialmente, eles lançaram LPs com compilações dos principais sucessos nas festas soul.

As mais famosas equipes de som, emprestaram seus nomes para os álbuns, em troca de uma parte da receita de vendas, tornando o negócio cada vez maior e mais rentável para ambos os lados.

O Movimento Black Rio também não também impactou fortemente a mídia na época do regime militar. Em 1976, no auge do movimento, a jornalista Lena Frias, do Jornal do Brasil, escreveu um artigo com o título sugestivo “Black Rio – o orgulho (importado) de ser negro no Brasil”, onde ela revelou uma classe média que chamou de “uma cidade com cultura própria” que a sociedade “prefere ignorar ou minimizar Brasil como um todo”.

A jornalista traçou um perfil exagerado e negativo da cultura do Movimento Soul, entrevistando DJs, organizadores, diretores de gravadoras e foliões. Excluiu os líderes do Movimento Soul, entre eles um dos seus mentores, Dom Filó.

A jornalista demonstrou na matéria do Jornal do Brasil de 17 julho de 1976 o seu compromisso em denegrir o Movimento e assustar a sociedade , designando-o como perigo social. Nas quatro páginas dedicadas à matéria no Caderno B, encontravam-se fotos legendadas com os seguintes dizeres: “Um ar de Harlem nos muros de Brás de Pina (Zona Norte do Rio), cobertos de slogans (em inglês) e de avisos das alegres equipes do Soul Power”.

Reportagem negativa, DOPs…

Formulada como uma acusação, a matéria caiu como uma bomba sobre o Movimento e trouxe repercussões negativas, propiciando uma completa repressão de todos os lados: dos militares, dos sambistas, da academia, de alguns setores do Movimento Negro, a partir dos conservadores ligados à direita. E até mesmo de alguns integrantes da esquerda.

Confundidos com militantes comunistas, Dom Filó, Tony Tornado, Gerson King Combo, Mr. Paulão, da equipe Black Power, e outros organizadores do Movimento Black Rio foram conduzidos para interrogatórios em salas secretas do antigo DOPS – Departamento de Ordem e Política Social no Rio de Janeiro.

Atualmente, com a abertura política, é possível acompanhar os relatórios gerados em plena ditadura militar e entender como os militares no poder viam o Movimento Soul e seus organizadores.

No mundo do samba, músicos tradicionais se tornaram os antagonistas da juventude negra, em artigos e entrevistas. Os jovens eram ridicularizados, tratados como “alienados” e acusados de virarem as costas à sua herança cultural afro-brasileira. Alguns desses críticos, incluindo o ator e produtor musical Jorge Coutinho e o compositor Candeia (saiba mais sobre o mestre Antônio Candeia Filho aqui) enxergavam o Movimento com preocupação especial.

Ambos criticaram a super exploração da soul music, que, segundo eles, provocou os jovens e os fez rejeitar sua cultura nativa. Para os sambistas, a soul music importada era um insulto à contribuição negra para a cultura brasileira, embora os bailes lotados produziam uma receita extra com a locação das quadras das escolas de samba para a realização dos bailes de soul.

Nos bastidores, Candeia e Dom Filó tinham um acordo comercial desde de 1976 e um pacto cultural que foi implementado em 1977 no II Encontro de Blocos Afros no Rio de Janeiro nas dependências do Grêmio Recreativo de Arte Negra E.S. Quilombo de Mestre Candeia.

No dia 18 de junho de 1977, com a presença massiva da galera do Movimento Soul, foi lançado o Projeto BR’AFRO, com a participação da equipe Soul Grand Prix apresentando o espetáculo ” Ressurgir das Origens”.

Participaram do espetáculo os grupos Abolição-IPCN, CEBA (São Gonçalo), Granes Quilombo, Vanguarda (SGP), Veneno e Zambi (Cidade Alta), além das atrações como Carlos Dafé, Zezé Motta, Banda Black Rio e Bamba Moleque.

Gilberto Freyre, luta de classes

Intelectuais como Gilberto Freyre, autor do clássico da antropologia do Brasil, “Casa Grande & Senzala”, criticou o Movimento através dos jornais.

O soul era visto como uma ameaça para a cultura brasileira, que “cresceu plena e fraternalmente mulata (interracial)”.

Freyre escreveu muitos artigos em jornais e revistas de São Paulo e Pernambuco condenando o Movimento Soul brasileiro, que representava para ele reflexo do imperialismo norte-americano.

Linguagens semelhantes foram expressas por grupos de esquerda antagônicos, que entendiam o movimento como uma origem importada dos Estados Unidos, vendo a música Soul como uma espécie de inimigo da soberania nacional.

Era um momento em que muitos formadores de opinião percebiam a sociedade apenas através das lentes da luta de classe socialista, tornando impossível para eles tomarem uma posição em relação à questão racial.

Eles acreditavam que, se o Brasil discutisse a discriminação racial naquele momento, deixaria de existir o socialismo como poder no país. Ou seja, tornava-se inútil discutir as questões negras sem relacioná-las à luta de classes.

Sob fogo cerrado de críticas vindas de todos os lados, o movimento começou a diminuir vertiginosamente, acabando por desaparecer da mídia e “moda black”.

As festas Soul sobreviveram por algum tempo, na periferia da cidade na zona norte. Hoje, o legado vive com outras vertentes da velha black music, em grande escala através do hip hop, do funk nacional e do charme. O movimento musical deixou de ter um tom de consciência racial para tornar-se puramente lazer.

Um dos estilos, o “funk nacional”, não tem nenhuma semelhança com o seu homólogo (funky) da década de 1970 dos EUA.

Estes “bailes funk” no Rio se caracterizaram num determinado momento pela violência entre os seus participantes e pela sensualidade negativa das mulheres, na sua maioria da comunidade negra. Uma vez mais, a sociedade dominante relegou uma manifestação cultural negra a estereótipos negativos da cultura afro-americana, que outrora contaminou parte da juventude brasileira inserida no Movimento Soul.

A Soul Music, por sua vez, até hoje se sustenta em cidades como Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte, com novos e velhos grupos que levam a frente a bandeira da Soul Music.

O que é extremamente interessante nesses eventos é a mistura de velha e nova escola, reunindo os aficionados em total harmonia.

O Movimento Black Rio gerou um grande número de vendas de discos e impactou significativamente o cenário musical do Brasil.

O seu legado nos encoraja a dizer bem alto “Eu sou negro e tenho orgulho”. Hoje esse legado continua vivo no samba soul, samba funk, samba reggae e samba hip-hop.

Observando a história do Movimento Black Rio, um dos principais resultados foi trazer à luz a questão da desigualdade racial no Brasil – em um momento em que a simples menção ao racismo gerava controvérsia.

Mas quem acompanha o Movimento desde o início tem consciência que, através da música, gerou-se um legado fascinante, percebido na ascensão social e na elevação da autoestima da comunidade afro-brasileira. Afinal, com uma canção também se luta, irmão!