O conto de fadas da bola

Todo mundo que curte o bom futebol deve ter torcido pelo Atlético Mineiro na reta final da Copa Libertadores da América – à exceção, é claro, dos cruzeirenses. Afinal, o Galo é o único dos grandes times brasileiros a ter mostrado, nos últimos tempos, um jogo vistoso, daqueles de empolgar. Sem falar naquela sequência de jogos decididos nos pênaltis, o que nenhum roteirista de cinema conseguiria imaginar. 

Mas eu tinha um motivo a mais para torcer pelo Atlético-MG, embora não seja atleticano, tampouco mineiro: é que naquele time do Cuca vez ou outra entrava em campo, para botar fogo no jogo, o menino Luan. A história desse “moleque”, como eu o chamava (naquele sentido “ah, moleque!”, manja?), sintetiza o conto de fadas que o futebol proporciona, transformando sapos em príncipes de uma hora para outra.

Vi o Luan chegar com 17 anos no Atlético Sorocaba, trazido por um pessoal de Goiás, embora ele fosse alagoano. Estava apenas acompanhando o grupo. O olheiro queria, na verdade, mostrar outros garotos para os comandantes das categorias de base do clube. Após um bate-bola, nenhum deles empolgou o técnico Ito Roque, que perguntou: “E esse aí?”, apontando para o Luan.

Se hoje ele já não é nenhum Adônis, na época, então, o garoto inspirava muita desconfiança: corria desengonçado, com os braços à frente, todo torto; era magro, com problemas visíveis de saúde… Mas convenceu Ito e o coordenador das categorias de base, o ex-jogador Vicente da Rocha, o Tim. Eles, por assim dizer, adotaram o carinha. Pouco tempo depois, o técnico do time profissional, Paulo Roberto Santos, decretou: “Esse aí vai virar”.

E virou mesmo. Luan foi sendo usado na base do Atlético Sorocaba (no mesmo time que teria o Bruninho, hoje no Flamengo) e foi entrando aos poucos no time principal com uma personalidade de fazer inveja a muito veterano. Marcou um gol na final da Copa Paulista de 2008 (quando o Atlético Sorocaba derrotou o XV de Piracicaba, no campo deste, com 25 mil pessoas no estádio, com gol aos 47 minutos do segundo tempo) e tornou-se artilheiro do time por três anos seguidos, na Série A2 do Campeonato Paulista.

Ainda assim, teve de enfrentar alguns técnicos “gênios do futebol” que insistiam em ver apenas o óbvio e o deixavam na reserva.

Em todo final de ano imaginava-se que Luan seria vendido para um time grande, mas ninguém tinha coragem de apostar nele: só chegavam propostas indecentes, o querendo por empréstimo gratuito para, se ele fosse vendido, repartirem o lucro. Numa dessas, quando o time finalmente subiu para a A1, levado a reboque por Luan, a Ponte Preta se arriscou um pouco mais, o emprestou com valor de passe (na linguagem antiga) fixado e bastaram seis meses jogando num clube de maior visibilidade para que o Atlético-MG o viesse buscar.

Muita gente tem motivo de sobra para antipatizar com o Atlético Sorocaba (afinal, é um “clube” que tem dono: a Associação das Famílias pela Unificação e Paz Mundial, ou seja, a igreja do recém-falecido Reverendo Moon), mas não dá para não se encantar com a história do Luan.

Nesse meio tempo, foi uma luta transformá-lo em atleta. Com sequelas de uma desnutrição comum nas periferias brasileiras (a família do Luan morava nos arredores de Maceió; ele estava no interior de Goiás morando na casa de tios), ele foi sendo “curado” aos poucos de todo tipo de males: problemas respiratórios, fraqueza muscular, cáries, micoses, etc, etc. Até recentemente, não aguentava uma partida inteira – principalmente no ritmo alucinante que imprime quando está com a bola nos pés.

Bem, o Luan hoje tem 23 anos, ganha uma graninha boa, ajuda a família e é cotado para ser o titular do Galo com a venda do Bernard (aquele que o Felipão diz ter “alegria nas pernas”) para a Ucrânia. Quem quiser saber mais sobre o início da trajetória do Luan pode clicar aqui: Reportagem sobre Luan. A matéria do Cruzeiro do Sul é de 23 de maio de 2009 e meio que profetizava o futuro do moleque.


VESTIBULAR MAIS CRUEL QUE MEDICINA

Mas, todo esse narigão de cera acima é, na verdade, para fazer um alerta. O caso do Luan é, de verdade, inspirador – como são 99% dos casos dos garotos que conseguem se transformar em jogadores de futebol profissionais.

Mas eles são um em um milhão.

Para cada Luan, tem dezenas de Dheymisons, centenas de Maykhos, milhares de Nordeilsons… O vestibular da bola é muito mais cruel que o da Medicina da USP, o funil é para lá de acentuado. Entram milhares de um lado, pinga um, às vezes, do outro.

Infelizmente, a realidade não é a do garoto que passa a ganhar dezenas, às vezes centenas de milhares de reais por mês. Esse é o topo da pirâmide, os casos que são divulgados. A maciça realidade, aquela que não sai na mídia, é a do garoto que não consegue estudar (treinando diariamente e jogando duas vezes por semana), mora longe da família, em alojamentos, durante toda a adolescência, passa dificuldades financeiras e emocionais e, quando chega na virada para a idade adulta, não consegue vingar.

Simplesmente, não acontece, porque o futebol é assim. Não raramente, casam e têm filhos cedo, tamanha é a carência. Alguns chegam ao profissionalismo, pererecando pelas terceiras e quartas divisões da vida, resistindo a tudo (salários baixos, falta de condições nos alojamentos, etc.) na busca pelo sonho comum de ser jogador de futebol. Até não dar mais.

Neste momento, largam a bola para “ir trabalhar”, como eles mesmos dizem (como se não trabalhassem antes). E, então, descobrem que não aprenderam a fazer outra coisa na vida, não estudaram nem aprenderam uma profissão. É o momento de recomeçar, já aos 20 e poucos anos, às vezes com família para sustentar.

O que fazer, então? Desistir do sonho logo cedo? Claro que não. Só para lembrar mais um caso inspirador, o Elias (aquele que arrebentou no Corinthians de 2009, chegou à seleção brasileira e hoje está no Flamengo) não conseguia ser titular no São Bento de 2007, ano em que o time caiu do Paulistão para a A2.

Em seu início de carreira, Elias ficou desempregado, teve depressão, jogava na várzea por uns trocados… até que, do Juventus (ainda em 2007) alguém o levou para a Ponte Preta no ano seguinte, Mano Menezes o viu e o levou para o Corinthians. Daí para frente é história: Atlético de Madrid, Sporting, Flamengo… E se ele tivesse desistido?

Familiares, clubes e, principalmente, os malditos empresários devem ter em mente que os garotos precisam, sempre, ter um plano B. Eles são gente e não um produto.

É preciso investir nos sonhos, mas sem abrir mão do ensino médio, o que dirá do fundamental, como muitos ainda fazem. Se é preciso prepará-los para o sucesso (como todos sabem), é muito mais necessário para o fracasso. Desta forma, se um dia a casa cair e o sonho da bola desmoronar, pelo menos o garoto terá vivido boas histórias para contar e estará preparado para tocar a vida.

A fábrica de sonhos (e pesadelos) que é o futebol voltará a ser tema no próximo post. Aguardem.

Adriano Catozzi é jornalista. Hoje, edita o caderno de esportes do centenário jornal Cruzeiro do Sul, de Sorocaba (SP).