Amsterdã e as bicicletas

Pensou em mobilidade urbana sobre duas rodas, pensou em Amsterdã. A capital cultural da Holanda, conhecida como a Cidade das Bicicletas, tem 400 km de ciclovias e esse é o melhor jeito de se circular pelo seu centro histórico, do século 17. Em Amsterdã, não há sistema público de aluguel de bicicletas – como o famoso Vélib de Paris, o Bike Mi, de Milão, ou o Bike Sampa, de São Paulo – mas há vários pontos privados de aluguel de bicicletas, na sua maioria sem marchas e com freio contra-pedal, ou seja, você freia pedalando para trás. No início, é meio desafiador, mas você logo se acostuma.

Cidade plana e pequena (cerca de 820 mil habitantes) em comparação com outras capitais europeias, Amsterdã tem tudo para ser bike friendly. Tanto que muita gente se locomove para o trabalho, escola, compras ou até para a balada, de bicicleta, mesmo debaixo de chuva ou no inverno holandês, que não é ameno.

A popularização desses veículos na Holanda data dos anos 1920, quando, no pós-guerra, as bicicletas fabricadas em uma Alemanha combalida eram muito baratas e invadiram o país. Esse meio de transporte cresceu tanto que as primeiras ciclovias apareceram em 1925. Mas, fora isso, nunca houve, ao contrário de outras cidades, incentivo para quem commute de bicicleta, ou seja, quem a usasse para se deslocar para o trabalho ou escola.

Com a dificuldade de se transitar de carro nas ruas nem um pouco paralelas do centro histórico, o respeito dos motoristas –  de automóveis e bondes (o “tram”), os pontos de estacionamento para bicicletas, nada mais natural que elas dominassem mesmo as ruas. O que é bom para a saúde e o meio ambiente.

Furtos

Mesmo com tanta civilidade e educação, um dos maiores problemas dos ciclistas holandeses é o furto de bicicletas. Pois eles ocorrem em grande número e são históricos. Anne Frank, a menina judia autora do famoso diário, teve sua bicicleta furtada em 1942, na frente do esconderijo da família, durante a ocupação nazista.

Segundo o jornalista norte-americano Pete Jordan, em seu livro “In the city of bikes – the story of the Amsterdam cyclist” (Harper Perennial, 2013), no final dos anos 1990, a polícia holandesa estimava que 180 mil bicicletas eram roubadas ou furtadas por ano em Armsterdã, o que dava mais de 20 por hora. O próprio Jordan foi vítima de um desses furtos.

Não é raro ver apenas rodas presas por cadeados em postes ou grades ou mesmo apenas os cadeados arrombados. Boa parte das bicicletas são roubadas por viciados em heroína ou por gente que as usa para voltar para casa, para economizar ou mesmo por não ter o dinheiro para o bonde.

Daí é fácil entender por que as bicicletas que se veem nas ruas e canais de Amsterdã costumam ser velhas, sujas e não sofisticadas. O que dá – convenhamos – um certo charme e ar de despojamento à cidade. Como se os holandeses desdenhassem: “Não estamos nem aí para o consumismo desenfreado e somos felizes assim”.

Donos das ruas

Outra característica das magrelas holandesas são as caixas, para as compras, na frente ou atrás, no bagageiro, e as mulheres levando crianças. Muitas vezes, duas, uma na frente e outra atrás. Ou em carrinhos empurrados pela bicicleta. Haja pernas e coração.

Andar com tanta confiança e desenvoltura de bicicleta pela cidade faz do ciclista de Amsterdã um imprudente, ou um verdadeiro anarquista, exagerariam alguns. Verdadeiros donos das ruas, eles não costumam respeitar semáforos e até mesmo pedestres. O problema é quando, em um cruzamento, um dos ciclistas fura o sinal e vêm outros do outro lado. Acidente na certa.

Jordan, do livro, conta que foi atropelado em sua primeira semana na cidade por duas bicicletas, no que ele acreditava ser a calçada. Mas era a ciclovia, que ficava entre a calçada e a rua. Nesse caso, ele, novato na cidade, estava errado, mas nenhum dos dois ciclistas pensou em parar, ou parou depois para perguntar se ele, caído no chão, estava bem.

Ditadura da bicicleta

Com os smartphones, o problema aumentou, pois não é raro ver jovens escrevendo SMS em cima da bicicleta – em movimento.  E cruzando o trilho do bonde em uma atitude suicida para nós paulistanos.

Por isso, há quem já reclame da “ditadura das bicicletas” na cidade. Não só lá. No final do ano passado, os taxistas de Milão se manifestaram contra o que alegam ser uma primazia total dos veículos de duas rodas, incluindo aí as populares scooters, que circulam sobre calçadas etc. nas vias italianas.

De qualquer forma, não dá para visitar a cidade sem alugar uma bicicleta, para flanar pelos canais, descendo da magrela para visitar seus famosos museus, como o Rijksmuseum e o Van Gogh, ou para um café. E, se cansar, dá sempre para entrar no bonde.

E nem dá para deixar de questionar as nossas horas perdidas e nervosas no trânsito desrespeitoso das grandes cidades brasileiras. Qual o modelo mais sábio? Eu fico com a autoconfiança do ciclista holandês.

Cristina Rappa, jornalista especializada em agricultura e meio ambiente, autora dos livros infanto-juvenis “Topetinho Magnífico” (Ed. Melhoramentos, 2012) e “Florestas” (Melhoramentos, 2014), é louca por uma bicicleta e, sempre que pode, troca as quatro rodas por duas e sai por aí.