No futuro, os combustíveis serão extraídos do açúcar, do lixo e até do ar!

No começo da década de 1970, o preço do petróleo se situava na casa dos US$ 3 o barril. Incomodados com a posição dos Estados Unidos nas guerras envolvendo Israel, os países árabes integrantes da Organização dos Países Exportadores e Produtores de Petróleo (Opep) resolveram dar o troco e elevaram o preço de venda para incríveis US$ 11. Neste contexto, começaram a ganhar força as políticas de substituição do chamado “ouro negro” como combustível para mover indústrias e veículos. O Brasil foi um dos que saíram na frente. Antes mesmo do final da década, em 1979, chegava às ruas o carro movido a álcool, como uma resposta à nova crise do petróleo, desta vez desencadeada pela queda do xá Mohammad Reza Pahlavi, supremo mandatário do Irã.

Deu certo. Apesar da forma jocosa como boa parte dos brasileiros se referia ao programa, a fabricação de veículos de passeio com motor movido a álcool atingiu a marca de 697.731 unidades,  em 1986, ou 72%, do volume total de 960.5709. Um sucesso, mesmo com deficiências tecnológicas como o uso de um reservatório de gasolina para poder fazer o carro pegar em dias mais frios. Os inconvenientes técnicos eram compensados pela política de preços, que fazia com que o álcool fosse vendido por um preço até 50% menor em relação ao da gasolina.

Desde então, o programa tem vivido períodos de altos e baixos, e o Brasil foi perdendo a hegemonia nesta área para os Estados Unidos, que criou um robusto programa de etanol feito de milho, além dos japoneses, que desenvolveram o carro híbrido, movido a combustível fóssil e bateria elétrica, sem contar os europeus com o seu biodiesel produzido da colza.

Etanol de 2ª geração

A falta de uma visão estratégica, aliada ao pouco incentivo à inovação e o desinteresse do setor, que sempre teve no açúcar seu principal mercado (respondemos por 25% da produção mundial, da qual somos líderes), fez com que o Brasil perdesse terreno na corrida pelo desenvolvimento do chamado etanol de segunda geração, fabricado a partir de fontes secundárias e menos nobres, como restos de madeira, sobras da produção agrícola e outros insumos do tipo.

Enquanto nossas indústrias insistiam no etanol de cana (até pela falta de uma política robusta de incentivo à inovação), o mundo seguiu adiante. Nos últimos cinco anos, vários projetos começaram a sair do papel em todos os cantos do planeta, menos na América Latina. Algumas empresas já falam até em fabricar combustíveis verdes a partir de uma mistura de água com o ar, como é o caso da britânica Air Fuel Synthesis!

No entanto, ninguém foi tão longe quanto a britânica INEOS Bio, uma gigante petroquímica com faturamento anual de US$ 43 bilhões e 15 mil empregados espalhados pelo mundo. Sua mais nova aposta é o bioetanol produzido de lixo.

É isso mesmo!

Aquela gigantesca montanha de resíduos que polui o lençol freático, causa mau cheiro e despeja toneladas de gás metano na atmosfera, o que ajuda a corroer de forma acelerada a camada de ozônio, pode ser uma opção viável para a produção de combustível verde, além de energia elétrica. A empresa se apresenta como a mensageira do futuro. Tanto isso é verdade que o etanol, produzido hoje nos EUA e no Brasil, é visto pelo CEO da empresa, Peter Williams, como um modelo produtivo ultrapassado, em release publicado no site da INEOS.

No início deste ano, a empresa anunciou que sua unidade instalada em Vero Beach, na Flórida (EUA), já estava apta a produzir em escala industrial. A meta é fechar 2014 com 30 milhões de litros de etanol e a geração de 60 megawatts de eletricidade, suficientes para suprir o consumo de 1,4 mil residências. A unidade começou a ser construída em 2011 e consumiu US$ 130 milhões. A energia gerada no processo será suficiente para tornar o complexo industrial autossuficiente. O faturamento do primeiro ano é estimado em US$ 19 milhões.

Apesar de o montante ser considerado pequeno em uma indústria na qual as contas são feitas em bilhões de dólares, o negócio é visto pelos dirigentes da INEOS como bastante promissor. Afinal, a corrida para tornar cada vez mais verde o processo produtivo e, especialmente o setor de transportes, virou uma obsessão na Europa e nos EUA. Tanto isso é verdade que a lista de empresas que apostam em soluções inovadoras não para de crescer.

Biogasolina feita de açúcar

Uma delas é a francesa Global Bioenergies. No início do mês, a companhia criada em 2008 como um dos frutos do esforço da União Europeia em aplicar recursos, até mesmo a fundo perdido, em start ups ligadas à pesquisa de combustíveis verdes, assinou um acordo com a montadora alemã Audi. O objetivo é a produção de biogasolina. O mais curioso é que a matéria-prima escolhida é o grão de açúcar, degradado a partir da ação de uma bactéria.

Em entrevista ao 1 Papo Reto, o diretor de projetos da subsidiária americana da Global, David Gogerty, afirmou que o produto não é apenas viável como também mais eficiente que o etanol convencional, como o produzido no Brasil, a partir da cana de açúcar. “Utilizamos uma quantidade muito pequena de açúcar, que pode ser obtida por meio da fermentação da cana, da beterraba ou do milho sem o risco de comprometer a produção de alimentos”, contou ele.

Uma das grandes vantagens, de acordo com o pesquisador, está na elevada taxa de octanagem da biogasolina e em seu grau de pureza. Com isso, ele estima ser possível fazer frente aos combustíveis fósseis, já que competirá no patamar de produtos premium, como a gasolina e o diesel aditivados. Daí a escolha da montadora alemã, conhecida por produzir carros esportivos e que deverá comprar uma fatia inferior a 2% das ações da Global.

Os testes de laboratório e de campo estão previstos para serem finalizados em 2016, e a produção, em escala comercial, começará na sequência. O Brasil faz parte da lista de mercados que estão no radar da Global, que já possui escritórios nos EUA e na Alemanha. “Já estamos em contato com possíveis parceiros na América do Sul”, destacou o pesquisador, sem, no entanto, revelar mais detalhes.

No Brasil, por sua vez, quem está mais adiantado nesta área é a GranBio, comandada pela família Gradin, sócia litigiosa da Braskem, a maior indústria petroquímica das Américas. A GranBio está dando os retoques finais em uma unidade produtiva situada em Alagoas, que recebeu um aporte de R$ 600 milhões do BNDES. Procurada por 1 Papo Reto, a diretoria da empresa, por meio de sua assessoria de imprensa, alegou que os executivos estavam impedidos de conceder entrevista porque a GranBio se prepara para abrir o capital na Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) e, por conta disso, têm de respeitar um “período de silêncio”.

“NOSSA BACTÉRIA É AGNÓSTICA EM RELAÇÃO ÀS MATÉRIAS-PRIMAS DISPONÍVEIS PARA PRODUZIR BIOCOMBUSTÍVEIS”

Apesar dos esforços do governo brasileiro e de sua agência de fomento à pesquisa e à inovação, a Finep, a tecnologia brasileira de etanol, em particular, e biocombustíveis, no geral, está bastante atrasada em relação ao que esta sendo feito no resto do mundo. Prova disso é que as tecnologias ligadas aos combustíveis de segunda geração, adotadas pela GranBio, com o apoio do BNDES, são assinadas por empresas estrangeiras: Beta Renewables, Chemtex, DSM e Novozymes. Outras empresas do setor já se preparam para desembarcar por aqui. E isso fica evidente nas palavras de David Gogerty, diretor de projeto da filial da Global Bioenergies baseada em Ames, no estado de Iowa, nos EUA, em entrevista concedida a 1 Papo Reto:

A escolha do açúcar como base para a produção da biogasolina não pode funcionar como um concorrente para a indústria alimentícia?
Sem dúvida, o uso de terras agriculturáveis para fins que não a produção de alimentos é controversa. Contudo, temos de distinguir a produção de insumos industriais (plásticos e elastômeros, por exemplo, feitos de borracha) e a produção de combustíveis. Quanto ao primeiro, a história mostra que a plantação de seringueiras jamais competiu com os alimentos em nenhum lugar do mundo, porque apenas uma pequena fração de terra tem sido suficiente para atender a demanda da indústria. Boa parte das matérias-primas utilizadas pela Global Bioenergies são o que chamamos de commodities químicas. Podemos utilizar o açúcar extraído da cana, da beterraba e também do milho, sem o risco de afetar a oferta de alimentos. No entanto, reconheço que o debate em torno dessa questão é legítimo. Esta parceria com a Audi contempla também recursos para pesquisarmos opções de produção de biocombustíveis de fontes não alimentares.

O bem-sucedido programa de etanol brasileiro é inteiramente baseado na cana. Em quais aspectos o sr. diria que os combustíveis sintéticos podem ser mais bem aceitos, na Europa por exemplo, onde existe uma resistência conceitual ao etanol brasileiro?
O etanol se transformou no principal motor de programas robustos de biocombustíveis, tanto no Brasil, quanto nos Estados Unidos, onde é usado o milho como matéria-prima, e na Europa, onde o destaque é a beterraba. O reinado do etanol deverá continuar por mais alguns anos. Mas o processo desenvolvido por nossa empresa apresenta inúmeras vantagens competitivas quando comparado ao do etanol. A começar pelo tipo de combustível que, no nosso caso é um isooctano, uma gasolina premium, que pode ser colocada diretamente no tanque dos veículos. No processo de fermentação utilizamos uma bactéria que permite converter todo o açúcar em energia, ao contrário do que acontece com o etanol. Por fim, também eliminamos o processo de purificação, por meio da destilação, usado no etanol.

Um dos maiores entraves para o desenvolvimento dos combustíveis renováveis é seu custo de produção em relação ao petróleo. A gasolina sintética é competitiva?
Com o preço do petróleo no patamar atual, todos os biocombustíveis são mais caros que o petróleo. É por isso que em diversos países existem estímulos para este mercado, quer seja por meio da tributação ou pela definição de cotas de produção. A meta da Global é ser competitiva em relação às demais opções de biocombustíveis e chegar ao mercado com o apelo verde, aliado ao fato de que concorremos na fatia de combustíveis premium.

E quando que a produção será iniciada em bases industriais?
Os testes iniciais estão previstos para serem concluídos até 2016 e a planta capaz de produzir em escala comercial será erguida na sequência.

A empresa planeja expandir suas operações para países como o Brasil?
Sim. Nós enxergamos oportunidades em diferentes países. Tanto no desenvolvimento de matéria-prima quanto no desenvolvimento de consumidores. Neste momento, estamos montando escritórios na Alemanha e nos Estados Unidos, além de estarmos discutindo parcerias com um grande número de empresas, incluindo algumas baseadas na América do Sul. Nosso modelo de negócios tem como foco a licença para fabricação de produtos.

Qual a sua opinião a respeito das pesquisas para o desenvolvimento do etanol de segunda geração, em especial as iniciativas que têm como base restos de produção agrícola e até resíduos industriais?
Nossa bactéria é agnóstica no que se refere à matéria-prima. Isso significa dizer que usamos hoje uma fonte primária, como o açúcar, mas nada impede que ela seja utilizada para produzir combustíveis a partir da palha da cana ou de quaisquer outros insumos disponíveis.

Em quanto tempo o sr. estima que a humanidade vá se libertar da dependência do petróleo?
É difícil, em termos globais, dizer quando que os combustíveis fósseis, como gasolina, carvão mineral e gás natural, serão completamente substituídos por alternativas renováveis. Acreditamos que o caminho para isso será por meio de uma combinação de opções, que passam pelo desenvolvimento de inúmeras tecnologias como os carros elétricos, o álcool hidratado (N.R. usado diretamente no motor de carros flex), além da biogasolina, que continuarão crescendo de importância no mercado. Contudo, esse movimento não será suficiente para eliminar os combustíveis fósseis nas próximas décadas. Isso será feito gradualmente e levará bastante tempo.

A parceria com a Audi é a primeira assinada pela Global com uma grande empresa?
Trata-se do primeiro acordo no campo dos biocombustíveis. Contudo, temos outras parcerias ligadas à pesquisa e desenvolvimento com diversas corporações envolvendo insumos químicos feitos a partir de fontes renováveis como plásticos e borrachas, por exemplo. Uma delas é a Synthos (N.R. baseada na Polônia e a maior empresa química da Europa), outra é a neozelandesa Lanza Tech, da área de biotecnologia e especializada na conversão microbiológica de gases expelidos por usinas de carvão, em combustíveis produtos químicos.

A produção de biocombustíveis já rende retorno financeiro para a Global?
Embora existam inúmeras vantagens com a produção de isooctano, temos que superar alguns desafios práticos em relação à produção desta molécula, ao contrário do processo para a fabricação do etanol, que já está mais adaptado para a produção em larga escala. Por conta disso, a fabricação da biogasolina em larga escala não deverá ser possível antes de 2017. Nossas receitas financeiras são oriundas das parcerias estratégicas com indústrias, além dos aportes feitos por investidores, que nos permitirão atuar em escala industrial nesta área.

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