A tecnologia e a criatividade são as pedras de toque da quinta edição do Festival Afrofuturismo, que acontece nos dias 20 (segunda-feira) e 21, no Centro Histórico de Salvador. Idealizado e realizado pela Vale do Dendê, um hub de inovação que reúne aceleração de empresas, espaços criativo e de conexão entre empreendedores, o Festival funciona como um local de troca de ideias e debates reunindo alguns dos mais importantes pensadores de América Latina, África e Europa (veja programação completa aqui).
O mote desta edição é a Volta para o Futuro que, ironicamente, tem por pretensão conectar os integrantes da comunidade afro-brasileira, e o público em geral, com a África ancestral, berço da civilização e onde nasceram importantes contribuições para a medicina, a ciência, a agricultura, a culinária e as artes plásticas.
Essa reconexão, de acordo com Carolina Maíra Morais, CEO da African Pride, deve ter por base todas as formas de intersecções possíveis: cultura, educação, negócios, turismo e fé. “A África é composta por cinco regiões geopolíticas: setentrional, ocidental, central, oriental e meridional, mas existe uma sexta, não oficial, que é encarada como um importante elo para o futuro do continente, que é a diáspora africana”, diz.
Carolina Morais, CEO da African PrideE é neste contexto, que segundo ela, o Brasil possui uma posição privilegiada pois é o país fora da África com o maior número de afrodescendentes. “Precisamos dar passos efetivos para que esta integração aconteça e se fortaleça, na prática.” Para Carolina, uma parte significativa do desinteresse pelo continente se deve a um trabalho de desconstrução das pessoas e da cultura africana. Como exemplo, cita um trecho de carta escrita pelo militar e expedicionário português Duarte Pacheco Pereira, depois de aportar em Gana: “Vejo pessoas de dentes grandes, olhos raivosos e rabos de cachorro.”
Mestra em história da África, pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e em comércio exterior, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Carolina argumentou que muito do que os brasileiros buscam em matéria de negócios, cultura e turismo pode ser supridos pelo continente. “Não é à toa que Estados Unidos, Rússia e China estão disputando o protagonismo econômico na África, o continente que possui a população mais jovem do mundo e ainda muitas riquezas. E não podemos ficar para trás.”
Agenda ampla
A estrutura do Festival foi pensada para oferecer ao público experiências diversas, mimetizando o que acontece em eventos do tipo, como o SXSW, realizado em Austin (Texas). Se em 2022 cerca de mil pessoas passaram pelos cinco locais do evento, para este ano, a expectativa é que entre três mil e cinco mil pessoas participem das dinâmicas (palestras, workshops, encontros de negócios e mesas de debates) em nove locais, entre o Centro Histórico e a Estação Lapa. “No ano passado, fomos prejudicados pela chuva torrencial e as novas levas de COVID-19 e influenza”, lembra Ana Cristina Araújo, gerente de Operações da Vale do Dendê.
Responsável pela interlocução com os empreendedores, ela destaca o papel pioneiro da Aceleradora Vale do Dendê na disseminação do tema inovação e na democratização de ferramentas da Tecnologia da Informação e da Comunicação (TIC) entre a comunidade PME da Grande Salvador. “Ao incorporarmos esses elementos aos nossos programas de aceleração de empresas, conseguimos abrir portas para muitas pessoas.”
Ana Cristina, da Vale do Dendê
Hoje, a rede Vale do Dendê conta com 300 empreendedores, além dos cerca de mil que participaram das inúmeras dinâmicas realizadas nos espaços da Vale do Dendê, na Estação Lapa, e no Pelourinho, onde fica a Casa Vale do Dênde. O imóvel, tombado pelo patrimônio histórico, ocupa uma área de 600 m², divididos em dois pisos. É lá que acontecem os eventos próprios ou de terceiros, notadamente empresas de fora de Salvador. “O Pelourinho tem voz própria que grita todos os dias ao som de batucadas de blocos afro, cortejos e outras tantas manifestações artísticas e culturais. Por conta disso, é o espaço ideal para quem trabalha com criatividade.”
O Festival Afrofuturismo teve como embrião a Ocupação Afro.Futurista, realizada em 2017 na Estação Lapa, em resposta à realização da primeira Campus Party na cidade, e no Nordeste, mas que não contemplou muitas das agendas ligadas à população negra. No ano seguinte, na onda do filme Pantera Negra, o evento evoluiu para o conceito de festival, já inspirado no SXSW e no Afropunk, passando a contar com múltiplas atrações. Esse percurso tem como um dos protagonistas o publicitário e empreendedor Paulo Rogério Nunes, cofundador da Vale do Dendê.
Na entrevista, abaixo, ele conta um pouco do processo criativo que orientou o Festival Afrofuturista Ano V, cuja marca é a conexão global com pensadores e empreendedores de diversos países da América Latina, da África e da Europa.
“Queremos ajudar a colocar Salvador no mapa global, no radar das principais organizações que trabalham com inovação, criatividade e empreendedorismo.”
O Festival Afrofuturismo chega à sua 5ª edição mais internacional do que nunca. É uma coincidência ou foi intencional ampliar o número de atrações de fora?
Essa edição é a mais internacional de todas. Conseguimos fazer uma articulação muito grande com parceiros que viabilizaram a vinda de um número significativo de participantes de outros países. Nesta edição nós temos cerca de 13 nações representadas no festival, incluindo a presença forte de Gana. A parceria que fizemos com a Embaixada de Gana no Brasil, que vai montar a Casa de Gana - um espaço colaborativo com foco na divulgação da cultura de Gana como gastronomia, moda, artes, literatura, etc. A intenção é realmente transformar esse evento que começou como ocupação temporária de espaços públicos, em um grande festival internacional, colocando finalmente Salvador no mapa global, no radar das principais organizações que trabalham com inovação, criatividade e empreendedorismo.
Qual o balanço que o srº faz do Festival, desde sua primeira edição, em 2017? Pode-se dizer que o termo Afrofuturismo já está embutido no léxico da cidade de Salvador?
O balanço do Festival é realmente muito positivo. Da primeira edição, que ainda era no modelo Ocupação, crescemos muito e escolher vir para o Centro Histórico de Salvador e nesse sentido tornar o festival como mais um vetor turístico de Salvador e o fato de ampliarmos a participação de pessoas, incluindo criadores de conteúdo, inovadores, pessoas da área de tecnologia. A gente tem um corte desse evento que era a ocupação afrofuturista que existia até em 2021 e em 2021 transformar em um festival de grandes proporções com expectativa de público de mais de 600 pessoas.
Além de funcionar como vitrine para pesquisadores, pensadores e ativistas, quais os legado deixados pelo Festival?
A curadoria é muito importante para um evento como esse, porque nós precisamos criar trilhas que façam sentido do ponto de vista dos interesses dos participantes. Então tem uma trilha para os jovens que querem entrar na área de game, tem uma trilha para os jovens que querem entrar na área de conteúdo, tem a trilha para pessoas da área da economia criativa, então precisa de muita curadoria para escolher as principais pessoas, e obviamente toda a curadoria envolve escolhas e tentar acomodar a diversidade que tem dentro desse campo. Houve um processo de curadoria muito intenso que a gente deve ampliar para o ano que vem, incluindo a criação de mais espaços.
A segunda coisa é que realmente a gente tentou atrair mais empresas. A dificuldade é muito grande de atrair patrocinadores para eventos aqui no Nordeste e em Salvador. E a gente contou aí que esse ano com duas empresas que se sensibilizaram e gostaram da proposta de valor do projeto, que é o iFood e o YouTube, além da Prefeitura de Salvador que é nossa apoiadora desde o ano passado. Além de diversos outros apoios institucionais, como o Governo da Bahia, o Sebrae e também outras empresas nacionais e locais.
Um evento dessa magnitude exige uma curadoria bastante afinada com o que acontece no mundo, além de depender de muitos recursos financeiros. O Festival conseguiu atrair empresas dispostas a aliar sua marca ao evento?
Além de funcionar como vitrine para pesquisadores e principalmente ativistas, nosso legado para a cidade é o legado de ajudar a calendarização do destino Salvador com esse foco do tema afro. Este ano estivemos integrados a vários outros festivais e eventos como Salvador Capital Afro que é a plataforma de promoção de Turismo da cidade de Salvador e dentro da plataforma Novembro Negro que é a plataforma do Governo do Estado. A gente realmente quer deixar como legado essa ideia de que nós seremos o evento tecnológico dentro desse calendário de eventos que acontecem no mês de novembro, mês da Consciência Negra.
Na 3ª edição do Festival aconteceram atividades também no interior da Bahia. Está previsto algo semelhante para esta edição?
Na terceira edição fizemos atividades no interior da Bahia, por meio de edital público que nos ajudou a chegar o interior do estado - Secretaria de Promoção da Igualdade e para esta edição do Festival estamos trazendo pessoas do interior do estado também, como a liderança indígena Ubiraci Pataxó, do Território Indígena Pataxó, do Sul da Bahia. Para o próximo ano, temos como objetivo descentralizar ativações do festival levando o festival preferencialmente para o interior da Bahia e outros lugares do Brasil e do mundo. Estamos estudando a possibilidade de criar um roteiro para que as pessoas venham para Salvador em novembro e nesse sentido nós queremos levar esse festival para países africanos. Nós assinamos uma parceria de cooperação com Cabo Verde e a gente gostaria de no próximo ano ter uma versão do festival em Cabo Verde, bem como em outras cidades do mundo e para criar esse circuito, convidando as pessoas para virem a Salvador, no final do ano.
Qual a expectativa do srº para a edição deste ano?
A expectativa para esse ano é consolidar o festival como um evento calendarizado, como um evento descentralizado, realizado no Centro Histórico, e fazer com que a gente tenha mais empresas apoiando o Festival em Salvador e toda a plataforma que esse festival tem durante o ano todo para outras cidades do Brasil e do mundo.
Nosso objetivo e nossa expectativa é que esse Festival se realize da melhor forma, que a gente consiga fazer uma boa entrega para a cidade e que as representações desses países participantes levem a mensagem do festival para seus territórios.
*O jornalista viajou a Salvador a convite da Vale do Dendê
