Descobrindo o afro-futurismo

Paulo Rogério Nunes, 35 anos, é uma pessoa que encanta os interlocutores já nos primeiros minutos de conversa. Ajudam nesta tarefa o jeito suave de abordar temas complexos e a fala tranquila, muito característica dos soteropolitanos. Sem pressa, de forma assertiva e valorizando ideias que unem os interlocutores mais que aquelas que os separam, ele vai defendendo seus pontos de vista. A partir daí, aproveita para mostrar seu vasto conhecimento em temas que vão da Economia Criativa e as novas mídias até boa parte do que acontece no mundo da tecnologia. Especialmente nos Estados Unidos e na África.

Aliás, mais que um empreendedor social, ativista, publicitário e estrategista em política e comunicação, Paulo Rogério gosta mesmo é de ser qualificado como afro-futurista. Um neologismo que, segundo ele, define os entusiastas do pioneirismo africano no campo das tecnologias. Foi graças a esta capacidade de olhar para frente, enxergar o futuro e ser parte da solução, que ele se transformou num dos mais ativos e qualificados interlocutores da comunidade baiana junto aos centros de saber e organismos multilaterais dos Estados Unidos e da África.

Nos últimos 10 anos, suas iniciativas tiveram como ponto central o Instituto Mídia Étnica, fundado em 2005 e que ocupa uma casa no centro histórico de Salvador. O projeto é fruto da parceria com jovens idealistas soteropolitanos e com ativistas americanos, como Joe Beasley, da Rainbow PUSH Coalition. Este espaço funcionou como o berço do Correio Nagô, um dos primeiros portais de notícias com pegada afro, do Nordeste. Hoje, a casa abriga as iniciativas tecnológicas AfroHacker e Plataforma VOJO e o espaço de trabalho colaborativo Ujamaa Coworking, destacando-se no debate do empreendedorismo protagonizado por afro-brasileiros.

Nesta entrevista, Paulo Rogério fala de sua trajetória e conta detalhes de sua nova fase como empreendedor e ativista social. A principal delas é a parceria com o prestigiado Centro Berkman, ligado à Universidade Harvard, dos Estados Unidos, no qual atua como afiliado nas pesquisas ligadas ao discurso do ódio na internet. Este tema, aliás, será debatido na conferência internacional que ele está ajudando a organizar, no Rio de Janeiro, nos dias 28 e 29 de abril.

A seguir, os principais pontos da entrevista:

Você se graduou em publicidade, mas acabou enveredando totalmente para o mundo digital, utilizando a comunicação como uma ferramenta na luta pela inclusão dos afro-brasileiros. Como se deu essa guinada em sua trajetória profissional?

Eu iniciei minhas atividades profissionais com informática mesmo antes de entrar na universidade. No início da popularização da internet comercial no Brasil (1997-2000) tive a sorte de trabalhar em provedores de internet, primeiro como técnico em manutenção de computadores e depois dentro das empresas atendendo clientes. Daí a minha paixão pelo tema. Realmente, apesar de me graduar em publicidade, desde sempre busquei trabalhar com as novas tecnologias buscando formas de criar soluções inclusivas. Me considero um Afro-futurista, um entusiasta da inovação e da possibilidade de fazer valer a tradição africana no pioneirismo no campo das tecnologias, que nos acompanham desde o Egito, Etiópia, Mali e outras civilizações e povos que contribuíram para o que conhecemos hoje de astronomia, física, matemática, computação e inovação, de modo geral.

Boa parte de sua formação acadêmica e intelectual se deu nos Estados Unidos. Para um jovem oriundo de família de baixa renda como foi essa transição entre o subúrbio de Salvador e Maryland? Foi difícil se adaptar a este novo mundo?

Tive a rara oportunidade de me conectar academicamente e como ativista com experiências e outras partes do mundo. Na realidade, meu primeiro contato com a discussão sobre diversidade na mídia foi por meio dos afro-alemães e confesso que fiquei surpreso em saber que em um país que tem um passado tão traumático há uma comunidade negra tão ativa e que entende a importância das mídias étnicas e comunitárias. Depois, em contato com o mundo acadêmico dos EUA, descobri ainda mais como isso se dá no contexto da luta dos afro-americanos. Consigo ver vários paralelos entre esses dois mundos. A comunidade negra dos EUA sofre com problemas similares ao Brasil, mas possuem instituições próprias mais sólidas e um senso de pertencimento maior, talvez seja essa a grande diferença. Mas, consegui criar muitas conexões e aprender muito da rica história de luta pelo empoderamento negro.

Hoje, graças a programas como Ciências sem Fronteiras está um pouco mais fácil para os brasileiros de baixa renda, quer seja ele branco ou negro, acessar os centros de saber no exterior. Qual o conselho que você daria para os jovens que pensam em estudar fora do Brasil?

Creio que conhecer outro país e aprender uma nova língua deva ser o melhor investimento que uma pessoa pode fazer na vida. A sensação de ser estrangeiro, de tentar aprender coisas básicas em outra cultura é realmente algo incrível. Recomendo a todos os jovens, e aos que não são mais jovens, a fazerem isso. Lembro que quando morei na Sérvia, um país que passou por uma guerra civil sangrenta, onde não há laço algum com a cultura brasileira, conseguia ver bastante similaridades em coisas simples como, por exemplo, a paixão por futebol e a música. Da mesma forma, a sensação de andar nas ruas de um país que está do outro lado do globo, que nunca foi escravizado e portanto tem pouca ou nenhuma conexão com o Brasil, e ser considerado como um local, por causa do meu fenótipo, me deixou impressionado. Isso aconteceu comigo na Etiópia. Enfim, vale muito a pena desbravar o mundo e buscar fazer conexões para além de nossas fronteiras.

Mais que um diploma de pós-graduação, você trouxe na bagagem contatos com empreendedores e militantes de inúmeros movimentos sociais nos Estados Unidos. Um deles é Joe Beasley, parceiro de longa data do reverendo Jesse Jackson em diversos projetos na Rainbow PUSH Coalition. No que estes contatos lhe ajudaram em sua militância social e atuação profissional?

A minha estada nos EUA me conectou não apenas com os movimentos e empreendedores de lá, mas me fez compreender mais o mundo. Tive colegas de vários lugares como Zimbábue, China, Paquistão, África do Sul, Sri Lanka. Isso é mais enriquecedor do que as aulas na universidade. Tive realmente o prazer de conhecer muitos ativistas importantes do movimento negro. Foi lá também que tive acesso ao fascinante ambiente acadêmico de Boston/Cambridge, quando fiz um estágio no MIT Media Lab e me conectei com inovadores e pessoas que estão pensando o mundo daqui há 30, 50 anos. Foi lá que descobri a tecnologia VOJO, que possibilita que as comunidades rurais, sem celulares sofisticados, enviar conteúdo para a internet até em cidades que não possuem energia elétrica. Também me conectei com a comunidade do Berkman Center, de Harvard. Enfim, trouxe na bagagem muitas ideias para transformar nossa realidade, bons contatos profissionais e, claro, fiz muitos amigos que sempre vêm me visitar aqui em Salvador.

O Instituto Mídia Étnica se tornou uma realidade em 2005. Você, como um dos idealizadores-fundadores da entidade, acredita que o trabalho inicial de incentivar outro olhar sobre as periferias por parte da grande mídia, especialmente em Salvador, tenha sido alcançado?

O Mídia Étnica completou 10 anos em 2015. Eu brinco que ele agora é um pré-adolescente e por isso tem começado se reinventar. Quando eu e outros amigos e amigas da época resolvemos criar a organização ainda usávamos o Orkut, e o YouTube ainda era um promessa. Muita coisa mudou de lá para cá, hoje há muito mais blogs, portais e abertura nas mídias sociais para se falar sobre os temas que falávamos em 2005. Isso é fantástico e mostra como apostamos na tecla certa, a da conectividade. Nenhum movimento social hoje pode ignorar o poder da internet. Quando falávamos isso, muitas pessoas não acreditavam.  Agora, a organização está começando um novo ciclo e elegeu, por uma provocação de uma das fundadores, a Ilka Danusa, o slogan Comunicar, Inovar e Empreender. A ideia é ousar em áreas que a comunidade negra precisa avançar. Nesse momento estou saindo da direção executiva da organização para me dedicar a novos projetos que, em breve, se tornarão públicos. Mas o que desejo, em síntese, é colaborar para que Salvador seja uma referência na área de Economia Criativa e da inovação.

A mídia, a publicidade e todas as demais áreas da comunicação foram fortemente impactadas pelas redes sociais. Neste contexto, o que o meio digital tem trazido de positivo e de negativo para a sociedade?

O meio digital é disruptivo. Ele possibilita que grupos que nunca tiveram voz coloquem suas questões no debate público, como foi o exemplo dos “rolezinhos”, o que, ao seu modo, trouxe à tona o debate sobre a invisibilidade negra e periférica. Da mesma forma, vemos hoje um número incrível de blogs, vlogs e sites, além de coletivos de mulheres negras debatendo questões que não possuíam espaço na mídia, antes da popularização da internet. Quando criamos o Correio Nagô, dirigido pelo meu colega e cofundador André Santana, havia poucos sites dedicados ao tema negro, hoje há centenas de páginas. Por outro lado, grupos que pregam o ódio utilizam esse mesmo espaço para se articularem e ganharem visibilidade. Essa é a grande contradição da Internet. Por isso, precisamos debater esse assunto com mais cuidado, tentando garantir a liberdade de expressão, mas evitando as violações de direitos humanos no meio digital. Esse é um tema complexo e urgente que precisa ser discutido por universidades, movimentos sociais, governos e empresas.

A questão do discurso de ódio, especialmente em sua vertente racial, vem ganhando uma amplitude tremenda com as redes sociais. Normalmente, os casos de maior repercussão envolvem pessoas famosas. Poderíamos dizer que o fenômeno se restringe aos ataques às celebridades ou estamos diante apenas da ponta do iceberg?

Definitivamente, as violações contra celebridades representam um fatia pequena desse constante aumento de crimes cibernéticos com base no racismo e demais opressões. É claro que ao atingir uma celebridade isso toma uma proporção maior pois repercute na mídia tradicional, mas há muitos casos que não são nem mesmo investigados ou sequer entram na cobertura dos jornais e TVs. Precisamos dar visibilidade a todos os casos e cobrar dos poderes constituídos a sua resolução.

Nesta semana, você vai liderar o primeiro projeto global do Berkman Center no Brasil, que é a conferência sobre o discurso do ódio racial na internet. Por que este evento é importante para a comunidade negra e os brasileiros em geral?

Desde o ano passado que fui escolhido, por meio de seleção, para fazer parte do Berkman Center, que é uma referência internacional nos debates sobre direitos na Internet. Particularmente estou, junto com minha colega Niousha Roshani, trabalhando na iniciativa que está debatendo a questão do discurso de ódio nos meios digitais. Por uma provocação dela, pensamos em fazer um encontro que além de reunir pessoas do Brasil e dos EUA, pudesse também envolver a Colômbia, que possui um padrão muito similar ao Brasil. Nesse encontro teremos profissionais, ativistas e representantes de organizações internacionais para pensar soluções para esse tema.

As ferramentas da Tecnologia da Informação vêm sendo apropriadas por grupos sociais ligados aos afro-americanos e aos latinos, nos Estados Unidos. No que estas experiências poderiam ser úteis para os jovens de baixa renda, em geral?

Existem grandes centros de inovação em cidades que há pouco tempo não eram percebidos como tal. Na Colômbia, a cidade de Medellín, que já foi uma das mais violentas do mundo, ganhou recentemente um prêmio pelo seu investimento na área de tecnologia e sustentabilidade. Kigali, em Ruanda, que passou por um terrível genocídio alguns anos atrás, hoje é uma das mais cidades inovadoras do continente africano. Nos EUA, Oakland, que fica junto do Vale do Silício, e é uma cidade negra, está criando um movimento incrível com ONGs como Black Girls Code, Yes We Code, Hack the Hood e outros. A sede do aplicativo Uber vai mudar para lá justamente por ser um celeiro de diversidade e produção de tecnologias. O jovem hoje, em geral, já está conectado, mas sem um propósito. É preciso dar a eles a oportunidades de não serem apenas consumidores, mas também produtores de tecnologias. No evento dessa semana vamos dar destaque a bons exemplos que provam que a produção de tecnologia por jovens pode ser algo transformador como o exemplo do aplicativo Kilombu (guia de empreendedores), o Gato Mídia (grupo maker), a loja virtual Kumasi etc.  Em Salvador, a Casa do Mídia Étnica é um espaço que sintetiza isso, com um centro de mídia que tem um coworking, o Ujamaa, um espaço chamado AfroHacker e reúne e abriga outras iniciativas.

No Brasil, os homens negros ainda possuem um padrão de vida muito aquém do dos homens brancos. No caso das mulheres negras, as diferenças de renda são ainda mais agudas. A tecnologia pode ser uma ferramenta importante no processo de aceleração da equalização da renda?

As tecnologias hoje são um dos principais vetores de desenvolvimento econômico. Não é por acaso que países como China, EUA, Coreia do Sul, Singapura e outros estão correndo para inovar e aproveitar seus talentos.  A tecnologia pode ajudar em processos de participação política, combate à violência, melhora da gestão pública e, claro, na geração de renda. Creio que ao investir no tripé diversidade, inovação e juventude o Brasil pode diminuir a abissal desigualdade que criou com os ciclos econômicos predatórios e excludentes que tivemos, onde mulheres, negros, moradores de periferia e residentes fora do eixo Rio-SP foram os mais prejudicados. É preciso, portanto, inverter essa lógica e apoiar massivamente o ensino de tecnologias para grupos sociais historicamente discriminados e excluídos. Isso será bom para todo o país.