“No meio do caminho tinha uma pedra. Tinha uma pedra no meio do caminho (...)" Os versos do escritor mineiro Carlos Drummond de Andrade, extraídos do poema “No meio do caminho”, marcaram inúmeras gerações desde seu lançamento, em 1928, na Revista de Antropofagia. Contudo, se hoje o nobre bardo resolvesse dar um bordejo pelas ruas dos bairros de Pinheiro e Vila Madalena, na Zona Oeste da cidade de São Paulo, veria que, em vez de pedras, seu caminho estaria sendo “dificultado” pelo excesso de buracos. A maioria deles evitáveis, pois são fruto de ações descuidadas/desastradas de concessionárias de serviços públicos. No caso destas localidades, boa parte da fatura deve ser cobrada à Comgás, a maior empresa de gás encanado do Brasil que há pouco mais de um ano vem empreendendo um ritmo frenético de escavações pelas ruas deste recanto da cidade, conhecido pelas opções variadas de comércio, lazer e moradia.
Os buracos variam de largura, profundidade ou forma geométrica. Mas o saldo final de todas as intervenções é o descaso e a falta de respeito!
Na cidade de São Paulo, as intervenções das concessionárias de serviços de água (Sabesp), energia (Enel, antiga Eletropaulo) e gás sempre geraram tensões entre as empresas, os cidadãos e o poder público. Nos últimos 20 anos, não faltaram administradores e legisladores dispostos a enquadrar essas empresas. A ação mais recente neste sentido foi o decreto 58.576/2019, assinado pelo prefeito Bruno Covas (PSDB). Em linhas gerais, o dispositivo prevê multa de R$ 2 mil por m² para as empresas que não realizarem corretamente o serviço de restauração da área quebrada.
Reprodução do site da PMSP (Cadin), às 8h10, de 7/8/19
Desnecessário dizer dos riscos embutidos para pedestres e motoristas que transitam por estas vias. Contudo, como diz a sabedoria popular, “Nada é tão ruim que não possa piorar”. Além dos buracos, os paulistanos ainda se deparam com verdadeiras armadilhas, representadas pelas placas de aço utilizadas para escamotear intervenções de maior porte. O problema dessa gambiarra é que as placas sempre são instaladas em desacordo com o nível do pavimento, formando um “degrau” de até 5 cm acima do nível do solo.
Procurada por 1 Papo Reto, a empresa se recusou a conceder entrevista. Tampouco a responder, de forma objetiva, as perguntas enviadas por email. Em vez disso optou por emitir um "Posicionamento" que mais parece um libelo:
Desnível acentuado na pista expõe os motoristas a riscos de acidentes
“Posicionamento
A Comgás executa as intervenções nas vias e calçadas de acordo com as normas e procedimentos aplicáveis pelo município. Nos processos de construção e ampliação da rede, a Comgás utiliza métodos não destrutivos para a implantação da tubulação subterrânea de gás natural encanado. Dessa forma, não há necessidade de abrir grandes buracos em toda a extensão das ruas por onde passará a rede. Ao contrário, são abertas apenas algumas pequenas valas pontuais, o que minimiza os impactos da obra.
Importante ressaltar que todas as valas abertas para a instalação da rede de gás natural encanado são fechadas de acordo com procedimentos técnicos adequados. Durante a execução da obra, quando necessário, a Comgás realiza um fechamento provisório e a identificação das valas e, ao final da obra em cada trecho, todos os locais são pavimentados no mesmo padrão anterior à intervenção feita pela companhia, seguindo todas normas vigentes.”
(…) ao final da obra em cada trecho, todos os locais são pavimentados no mesmo padrão anterior à intervenção (…)Essa autoimagem de competência e respeito aos cidadãos, ao que parece, não é corroborada pelo distinto público. Levantamento realizado pelo site Reclame Aqui, mostra que a Comgás foi alvo de 1.117 queixas entre 1º de janeiro e 15 de junho. Trata-se e um montante próximo do registrado no acumulado dos 12 meses de 2018. Neste ritmo, a empresa poderá quebrar seu próprio recorde, furando a barreira de duas mil queixas.
Mas se as autuações da Prefeitura não são suficientes para enquadrar as concessionárias, tampouco a ação da Justiça e as queixas dos cidadãos, o que resta, então?
“A questão é complexa”, avalia George Frug Hochheimer, presidente da Associação de Moradores de Pinheiros (AMOR Pinheiros). “Numa cidade como São Paulo, o ideal é que as relações entre os cidadãos, o poder público e as empresas sejam cada vez mais institucionalizadas”. Para que isso aconteça, ele defende a criação de canais eficientes de comunicação e prestação de contas. “A Prefeitura precisa fazer o papel dela, na fiscalização. Por outro lado, temos de conscientizar quem não cumpre as leis sobre os efeitos deletérios causados por eles”.
Formado em arquitetura e urbanismo, George conta que a Associação está em fase final de estruturação e que a coordenadoria específica para tratar de buracos ainda está em formação. “Primeiro, estamos mapeando os problemas e tabulando as demandas da população, para depois iniciar as ações concretas”.
Difícil vai ser dar conta de tantas intervenções que ajudam a degradar os bairros de Pinheiros e Vila Madalena, além de colocar em risco a saúde de pedestres e motoristas. Até porque, mesmo quando a obra da Comgás acaba, fica para trás um legado de descaso e desrespeito aos cidadãos na forma de buracos mal tapados que vão se abrindo lenta e perigosamente.
No meio do caminho dos paulistanos existem buracos. Existem buracos no meio do caminho dos paulistanos que circulam a pé ou motorizados, pelas ruas de Pinheiros, Vila Madalena, Alto de Pinheiros, Consolação, Brás...
SAIBA MAIS
Sobre o decreto da Prefeitura de SP que enquadra as concessionárias
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