Em tempos de redes sociais, as mídias comunitárias e “convencionais” deveriam enxergar uma a outra como aliadas

Em tempos de redes sociais, as mídias comunitárias e “convencionais” deveriam enxergar uma a outra como aliadas

O jornalismo está um pouco perdido. Não só em termos de formato e monetização, mas também de conteúdo. Com tanta informação, é difícil mostrar aos leitores nosso diferencial. Tem jornal apresentado em horário nobre mostrando vídeos que bombaram nas redes (coisa que não me convence como espectadora, para quê ligar a TV se vai passar o que eu já vi no celular?) Nós jornalistas estamos feito baratas tontas, experimentando pra lá e pra cá para ver o que cola. Precisamos recriar nossa identidade, moldar nosso conteúdo e reconquistar a confiança do leitor.

Ao surfar a onda da internet, ficamos um pouco presos em sua cultura. Muito do que se vê nas redes sociais são bolhas de opinião, onde as pessoas só seguem e curtem o que concordam e cancelam o que discordam. E acho que nós jornalistas caímos um pouco nessa arapuca. Não tem problema ter um determinado tom ou uma ideologia que guie a linha editorial do veículo, mas sinto que muitas redações estão presas dentro de suas bolhas e por isso só conseguem segurar seus leitores fiéis de décadas, deixando de se conectar com um público novo que procura informações apresentadas de forma diferenciada. 

Se o papel do jornalismo é promover a democracia ao informar a população, empoderando-a a praticar ações baseadas em conhecimento, temos que falar sobre o que não tem nas redes, restaurar a noção de complexidade sobre a sociedade, preenchendo as lacunas. E é daí que vem a importância de um pacto entre grandes veículos e a mídia independente, especialmente a de pequeno porte, que nasce a partir de iniciativas comunitárias. 

No Festival FALA 2023, que aconteceu em Recife nos dias 21, 22 e 23 de setembro, fui apresentada a veículos com uma proposta super interessante: dar o protagonismo da notícia para comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas e favelas, sobre as quais muito se escreve, mas pouco se ouve. Como discutido no Festival, ao ler jornais “convencionais” a gente fica sabendo de quantas pessoas morrem nas favelas, mas falta informação sobre a complexidade por trás desses crimes, sobre o dia a dia das pessoas, sobre as coisas boas que também existem dentro das comunidades. Aspectos que, em geral, as “grandes” redações, com cada vez menos funcionários e leitores, não parecem ter tempo ou recursos para suplementar. 

O que as mídias independentes, produzidas por iniciativas individuais ou por coletivos de comunicação, possuem como grande diferencial é um olhar local. Além de exercer o importante papel de informar suas próprias comunidades, suplementando a falta de acesso à informação sobre temas como saúde e educação, estes jornais, rádios e emissoras de TVs levam ao grande público a realidade invisibilizada do dia a dia de muitos brasileiros, enriquecendo nossa percepção e entendimento do nosso país — exatamente a complexidade que o jornalismo necessita para restaurar a confiança do grande público, e continuar avançando em sua missão de promover a democracia.

Acontece que, apesar de existirem algumas colaborações entre veículos ditos convencionais e comunitários, ficou claro para mim, após o Festival, que ainda existe desconfiança e uma certa rivalidade entre esses dois tipos de veículo, o que só prejudica o avanço do jornalismo e dos jornalistas. Da parte dos grandes veículos, vem um preconceito contra a qualidade do jornalismo hiperlocal, que além de ter como principais fontes a própria comunidade, também experimenta muito mais na forma de contar histórias, como poemas ou quadrinhos. Isso gera desconfiança por parte dos veículos “tradicionais” que atuam em um formato “padrão”, celebrado por eles como único. 

Para esses  “grandes” veículos, a mudança de narrativa e representatividade deve se dar de dentro para fora, por meio de vagas afirmativas para a contratação de um determinado perfil de repórter, parcerias com blogs comunitários e a produção de reportagens sobre diversidade. 

Já por parte dos veículos comunitários, existe uma desconfiança quanto a capacidade dos “grandes” veículos de mudar sua narrativa sobre comunidades invizibilizadas, aprisionadas em estereótipos (como o da favela como sinônimo de violência e criminalidade) ao serem colocadas como personagens em reportagens que retratam vilões e mocinhos, pretos e brancos, ricos e pobres, traficantes e playboys sem um aprofundamento dentro de um contexto que mostre a realidade dos dois lados. Para muitos militantes de órgãos de comunicação independente, cabe a eles abalar essa estrutura a partir de ações que mostrem os desacertos da grande mídia, pressionando-a a mudar suas atitudes, enquanto criam novos veículos que publicam reportagens com a complexidade de suas próprias narrativas, proporcionando uma mudança de fora para dentro.

Mas por que não juntar forças e promover a mudança em ambas direções, de dentro para fora e de fora para dentro? 

Festival Fala Plateia recife 1 papo retoPlateia do Festival FALA!, em Recife

Assim como os jornais metropolitanos informam a população de uma região específica enquanto complementam as notícias dos jornais nacionais, a mídia comunitária pode assumir um papel semelhante em relação aos jornais metropolitanos e nacionais. E, não, isso não significaria piorar o conteúdo “tradicional” ou fazer comunidades invizibilizadas se ajoelharem diante da "grande mídia”. Os jornais “convencionais” têm mais alcance por serem maiores, e aproveitar sua estrutura só ajuda a potencializar a mudança. Pautas afirmativas e um olhar para a diversidade fazem alguma diferença, mas podemos fazer mais e fazer diferente, utilizando o que já existe. 

Muito do que se fez até agora se limitou em pegar um veículo comunitário e integrá-lo ao conteúdo de um jornal “convencional" em formato de “blog” dentro do portal, ou como uma “fonte alternativa”. Mas é preciso tratar os veículos comunitários com o respeito que eles merecem, confiando na importância de seus formatos e narrativas, valorizando sua independência e decisões editoriais. Eles precisam existir como parte da imprensa, não como uma categoria “B”. 

Afinal, assim como os veículos de grande porte compram reportagens da Reuters, do New York Times e do Washington Post, por exemplo, por que não adquirir,  também, de veículos independentes e periféricos? A função é a mesma, com a vantagem de essa atitude ajudaria a fomentar a indústria nacional de notícias, gerando capital para as comunidades. E se um dos empecilhos dos grandes jornais sobre as mídias comunitárias é a qualidade do material produzido, por que não sentar e discutir o processo jornalístico? Só que para acabar com a desconfiança, é preciso que os dois lados estejam dispostos a se ouvirem como agentes importantes de uma mesma indústria.  

Eu estagiei numa redação que tinha uma proposta superinteressante de conciliação, empoderando os jornalistas do nosso pequeno veículo. O nosso foco era imigração, e, como muitos veículos hoje em dia, trabalhávamos com freelancers. Para dar aquele olhar diferenciado, a proposta era publicar histórias de dentro das comunidades imigrantes, que tinham a ver com os assuntos do momento, mas que mostravam a complexidade do dia a dia e das histórias daqueles que tinham emigrado para os Estados Unidos. Só que além de postar no nosso próprio site, a gente pautava as nossas reportagens para veículos com um porte maior do que o nosso, levando a informação para um público maior enquanto divulgávamos nosso trabalho e empoderávamos os repórteres freelancers, que recebiam uma grana extra pelo “segundo” freela. 

Na questão da “qualidade” da reportagem, não tinha choro. A gente entregava uma versão com todos os links, fontes, docs e entrevistas, provando todos os fatos citados. Desse jeito, a redação do veículo maior podia fazer uma segunda checagem e se assegurar de que tudo estava conforme a sua exigência.

Claro que nem tudo são flores. Com certeza existem complexidades nesse processo na prática, mas fica aí minha provocação: por que não trabalharmos juntos para criar uma nova identidade para o jornalismo? A mudança pode — e deve — ser de fora para dentro e, ao mesmo tempo, de dentro para fora. Temos que falar com o maior número de leitores possível, trazer o que não se encontra nas redes sociais e voltar a mostrar a complexidade por trás de assuntos do momento, sem cair na arapuca de falar apenas para um único público.

 

Isabela Rocha

Autor: Isabela Rocha

Sobre o/a Autor(a) Isabela Rocha é jornalista freelancer. Apaixonada por escrita, comunicação e justiça social, seu sonho profissional é trabalhar para o avanço da igualdade de gênero e do combate ao racismo. Ela acredita no poder democrático das notícias e sempre busca contar histórias relacionadas à diversidade para normalizar a vida de minorias sociais.


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