Ainda temos muito a superar quando o assunto é equidade de gênero e raça e as inúmeras desvantagens a que as mulheres, especialmente mulheres negras e indígenas, estão submetidas. E quando o tema é arte e cultura não é diferente. Ao contrário do que muitos pensam, o universo criativo está longe de ser uma bolha, um território livre de desigualdades e discriminação.
Sob o risco de chover no molhado ao repetir que as vozes do racismo e do patriarcado também ecoam na cadeia produtiva da cultura, é preciso atacar o mito amplamente difundido de que existe uma espécie de essência vanguardista natural do meio artístico que o difere da estrutura social geral. Na prática, a cadeia produtiva da cultura produz e reproduz exatamente as mesmas desigualdades sistêmicas presentes na sociedade, criando, ainda, dinâmicas particulares de injustiça, reforço de estereótipos, silenciamento e outras violências subjetivas. Para combater essas disparidades é preciso escancará-las, assumi-las.
As desigualdades sociais baseadas em gênero e raça negam às profissionais negras das artes, por exemplo, as condições equitativas de acesso à produção, divulgação, marketing, distribuição e comercialização de suas obras. Como reflexo de problemas sociais e econômicos históricos, mulheres negras figuram entre as que possuem menos acesso às políticas culturais.
As transformações aceleradas pela pandemia do novo coronavírus intensificaram ainda mais o problema, especialmente agora que a necessidade de digitalização e reformulação dos mecanismos de produção e distribuição colocaram grande parte dos trabalhadores da economia criativa diante de grandes desafios tecnológicos. Isso para não entrar em detalhes sobre o fato de que mulheres negras estão na base da pirâmide, vivendo em maior número a crise econômica, o desemprego, a informalidade e os menores salários. Ou seja, a desigualdade opera tanto do ponto de vista de quem consome (ou deveria) como de quem produz arte e cultura.
As desigualdades de gênero na cadeia produtiva da cultura também ficam evidentes quando olhamos para a sub-representação das mulheres nas áreas técnicas, nas funções diretivas, nas curadorias e também nos palcos dos festivais. Nesse mesmo sentido e, em âmbito nacional, a produtora cultural Thabata Arruda, em parceria com o Sesc, desenvolveu o estudo "A presença feminina nos festivais de música" e constatou que ainda estamos distantes de obter equidade de participação nos palcos, ou seja, um número mínimo de festivais e grandes eventos musicais olham para a equidade de gênero em suas programações.
Outra referência é o estudo desenvolvido pelo veículo Pitchfork, em que 20 grandes festivais de música foram analisados para verificar a participação feminina nos lineups, comparando os anos de 2017 e 2018. Entre todos os dados obtidos por eles, é possível perceber que a presença feminina foi de 19%. Infelizmente, há uma carência de recorte racial nessas pesquisas, mas o cruzamento de macrodados como os expostos acima podem nos dar certa medida da problemática quanto à ausência de mulheres negras.
Como minoria nas curadorias de museus e festivais, nos espaços políticos de notoriedade e à frente da captação de recursos, as mulheres negras acabam por ser minoria também nos palcos e galerias. E, cada vez que conquistam um desses espaços, eles são desvalorizados e precarizados. A desvalorização do trabalho e das contribuições das mulheres negras para a sociedade está ancorada na distinção entre os papéis de gênero e raça, historicamente construídos dentro do patriarcado. Na cadeia produtiva da cultura essa realidade se revela da produção cultural aos fazeres artísticos.
As áreas com maior predominância de mulheres são as mais precarizadas, seguindo a lógica dos indicadores de gênero e raça no mercado de trabalho. Jornada tripla, menores salários, informalidade, violências, assédios e invisibilidade. Não existe imunidade para as mulheres da cultura. E a crueldade das estratégias de perpetuação dessas condições impostas assume complexidade e práticas de silenciamento tão diferenciados quanto difíceis de identificar em uma avaliação superficial.
É urgente ter respostas consistentes para perguntas como: de que maneira as desigualdades de gênero e raça presentes no mercado de trabalho se refletem na cadeia produtiva da cultura? Que medidas e estratégias o Estado precisa adotar no percurso de superação dessas desigualdades? Por que as mulheres estão sub-representadas nas áreas técnicas e nas posições de decisão e poder? Como agentes culturais podem adotar compromissos e programas de diversidade em seus projetos e contribuírem para a superação das desigualdades? Como ter um olhar interseccional para as políticas culturais e para a equidade de gênero na cadeia produtiva?
Perguntas e mais perguntas, cujas respostas estão sendo dadas por meio de projetos e esforços profissionais e pessoais de mulheres que atuam na cadeia produtiva das artes. Mulheres que atuam para transformar o cenário enquanto enfrentam as violências cotidianas. Para quem ainda acredita que a perspectiva de gênero e raça na cultura seja papel apenas do Estado, é preciso se dar conta da importância de tratar essas interseccionalidades no dia a dia.
O campo das artes e da cultura, embora tenha muito a avançar, segue sendo espaço estratégico de transformação e disputa de narrativas e imaginários. Mas, para que lugar de mulher (importa lembrar que mulheres pretas e indígenas também são mulheres!) seja de fato onde ela quiser, é bom admitir que temos muitos problemas a serem resolvidos e que o privilégio tem identidade de gênero, raça, classe e endereço também na economia criativa.
Foto de abre: Marcello Casal (Agência Brasil)