Livro mapeia os prejuízos econômicos e sociais causados pelo racismo, no Brasil

Livro mapeia os prejuízos econômicos e sociais causados pelo racismo, no Brasil

Ao longo de boa parte do século 20, cristalizou-se a ideia de que o preconceito racial no Brasil era fruto da pobreza. Ou seja: os não brancos seriam discriminados por serem pobres e não pela cor da pele. Nessa linha de raciocínio, bastava fazer o Produto Interno Bruto (PIB) crescer para que houvesse uma significativa redução ou até mesmo a eliminação dessa chaga social. Bem, a realidade cuidou de desmontar essa tese. Afinal, no período 1930-2000, o país saiu da condição de economia agrária e atrasada para o posto de um dos dez maiores PIBs do mundo, sem reduzir, em nada ou quase nada, os níveis de pobreza aliados à discrminação racial. Uma boa amostra disso é que chegamos a 2021 com 64,6 milhões de brasileiros em estágio de pobreza social. A taxa ocorre de maneira desigual entre brancos (19,4%) e negros, pardos e indígenas (38,9%).  

Mesmo com todas essas evidências e comprovações empíricas, a tese segundo a qual deveríamos fazer o bolo crescer antes de reparti-lo, pontificada pelo economista Delfim Netto, ministro da Fazenda do governo Médici, continuou ganhando adeptos. O mesmo “estado de negação” tomou conta de boa parte da intelectualidade e dos gestores públicos, quando começou a ganhar corpo o debate acerca das políticas de reparação racial, em meio à Constituição de 1988. 

A partir de 2010, no entanto, alguns estudos do IPEA começaram a mostrar o que já se conhecia na prática e que, também, acabara de se tornar objeto de estudo de intelectuais e acadêmicos, especialmente os ligados ao enfrentamento do racismo institucional: a pobreza no Brasil tem cor e CEP, determinados!

Mais recentemente, surgiram estudos e teses acadêmicas, elaborados a partir de rigor científico, identificando a contribuição das políticas públicas na construção e na perpetuação do racismo à brasileira. Alguns deles foram reunidos no livro Números da Discriminação Racial: Desenvolvimento Humano, Equidade e Políticas Públicas, lançado pela editora Jandaíra. A obra, organizada pelos pesquisadores Alysson Portella e Michael França, integrantes do Núcleo de Núcleo de Estudos Raciais do Insper, traz uma profunda reflexão sobre os efeitos e consequências da discriminação racial no Brasil. 

Os artigos são assinados por acadêmicos, tais como: Naercio Menezes Filho e Bruno Kawaoka Komatsu, e o livro é prefaciado por Luana Ozemela, embaixadora do Pacto de Mulheres Negras 2023 e uma das 500 pessoas mais influentes da América Latina. O lançamento está previsto para sexta-feira (27/10), em evento realizado no Insper, na Zona Sul de São Paulo (inscrições aqui).

1 Papo Reto conversou com Michael França, um dos organizadores da obra, e com a fundadora e principal executiva da Editora Jandaíra, sobre a importância desse livro no momento em que se discutem temas sensíveis como renovação das cotas nas universidades e a necessidade de políticas de reparação para a comunidade negra. Acompanhe:

Michael Franca Insper 1 papo retoMichael França é doutor em teoria econômica pela USP e coordenador do Núcleo de Estudos Raciais do Insper

 

O racismo institucional atrasa o desenvolvimento econômico do Brasil

 

Do ponto de vista concreto, como poderíamos mensurar o impacto do racismo estrutural no PIB brasileiro? 

Acho que um bom ponto de partida é o que fizemos no livro, ou seja, mostramos em várias dimensões que afetam o bem-estar da população como estão evoluindo as disparidades raciais nas últimas décadas. No mercado de trabalho, por exemplo, negros com características produtivas semelhantes às dos brancos ganham, em média, 14,25% a menos. Isso afeta não somente a acumulação de capital da população negra ao longo do tempo, mas também pode influir nas escolhas. Os jovens podem antecipar que serão discriminados no mercado de trabalho mesmo se estudarem. Assim, podem acabar investindo menos em educação. Existem diversos outros fatores que afetam negativamente as possibilidades de a população negra ter acesso a melhores oportunidades educacionais. Os mecanismos discriminatórios geram diversas barreiras para a juventude negra e para aqueles que nasceram em ambientes desfavorecidos. Com menos educação, temos um país com menor capital humano e baixo crescimento. 

Levando-se em conta que é possível acabar com o racismo, mas não com o preconceito presente em praticamente todas as sociedades, seria possível dimensionar os prejuízos causados pelo preconceito e pelo racismo?

Baixo crescimento econômico é só um deles. Mas estamos falando aqui de uma grande massa da população brasileira que se encontra na pobreza ou em uma situação que a coloca em algum nível de vulnerabilidade social, e que tem seu desenvolvimento individual freado por forças que estão fora de seu controle. Estamos falando de uma grande parte da população que não consegue atingir plenamente suas potencialidades pelo fato de a sociedade não ter lidado com o viés racial presentes nas interlocuções cotidianas. 

No release que apresenta o livro, o Sr. fala em “ponto de partida" para equacionar a situação. Mas, afinal, o que precisa ser feito para que acabe o racismo institucional no Brasil?

Muitas coisas. Mas, considero que o foco atual deveria ser ampliar a representatividade da população negra em posições de poder, especialmente, na política institucional e na docência das universidades. A partir disso, será mais fácil encaminhar políticas públicas que, de fato, impactem a população negra.

O Sr. é um dos mais jovens pesquisadores a se debruçar sobre este tema. Quais foram as influências para o Sr. ingressar nesta linha de estudo e pesquisa?

Confesso que entrar na agenda racial foi uma surpresa para mim. Não me via nesse papel. A grande influência foi o professor Sergio Firpo que, atualmente, é o Secretário do Ministério do Planejamento. Eu tinha acabado meu doutorado e estava trabalhando com ele no Insper. Assim como eu, Sergio tem um profundo incômodo em relação às questões sociais no país. Em determinado momento, resolvemos começar a contribuir, pontualmente, com alguns estudos na agenda racial e o negócio foi crescendo. Economia é uma área estratégica. Para o bem ou para o mal, a gente influencia muita coisa. 

O fato de estar na economia está me ajudando a influenciar gestores e setores da sociedade que não têm muita consciência dos desafios ligados à agenda racial. Fico bastante feliz em poder ajudar na causa. Mas também é importante valorizar todo trabalho feito pelos movimentos e pessoas simpatizantes da causa antirracista. Como costumo dizer: tudo é fruto de uma construção coletiva e tudo que fazemos é sobre e para as pessoas.

 

LIZANDRA ALMEIDA 1 papo reto PAULINHO DE JESUSLizandra Almeida, fundadora da Editora Jandaíra / Foto: Paulinho de Jesus

 

Parceira de longa data com autores afro-brasileiros

 

 

Quais os fatores que levaram a Editora Jandaíra a abraçar este projeto? 

O projeto foi apresentado a nós por um dos organizadores, Michael França, um dos articulistas do livro A Resistência Negra ao Projeto de Exclusão Racial, organizado pelo professor Helio Santos, por isso de alguma forma já havia alguma proximidade. França também é, reconhecidamente, um dos grandes economistas brasileiros atuais, e está à frente do Núcleo de Estudos Raciais do Insper, o que representa uma aquisição muito significativa para o nosso catálogo. Mas além das credenciais do organizador e do próprio Insper, a obra em si traz dados muito importantes para demonstrar o que as lideranças negras afirmam há tanto tempo, que é a profunda desigualdade racial brasileira em todas as áreas. Ao abordar assuntos como educação, saúde, mercado de trabalho, violência, encarceramento, entre outros, o livro também é uma ferramenta fundamental para municiar políticas públicas.

Em 2022, a Jandaíra lançou uma seleção de artigos sobre a condição da comunidade negra, no Brasil. O debate da questão racial tende a ser a linha mestra da Jandaíra?

O catálogo da editora discute, em geral, questões de classe, raça e gênero de maneira interseccional, principalmente publicando autoras e autores nacionais. Mas a questão racial, sem dúvida – justamente por ser um dos problemas brasileiros mais profundos – é nossa linha mestra.

Quais são os principais destaques da editora?

A Coleção Feminismos Plurais, coordenada pela filósofa e ativista Djamila Ribeiro, hoje tem 14 títulos e é nosso carro-chefe. São livros que discutem vários aspectos da questão racial no Brasil, de maneira acessível. Os títulos dessa coleção, que trazem na capa a imagem do autor ou da autora – sempre negros e negras – muitas vezes são o primeiro livro que nossos leitores adquiriram na vida. Já vendemos quase 500 mil exemplares, entre todos os títulos, nos formatos impresso e digital. Além disso, temos vários outros livros que discutem a temática racial voltados para professores, e uma linha de obras infantis. Também temos publicações de autores e autoras indígenas, como Marcia Kambeba e Ailton Krenak (junto com o pesquisador Yussef Campos), e discussões sobre gordofobia, capacitismo, entre outros temas urgentes.

Em nossa linha de literatura, que de alguma forma também discute as temáticas dos livros que publicamos de não ficção, já ganhamos o Prêmio Jabuti de contos com Flor de Gume, da autora paraense Monique Malcher (que aborda violência doméstica) e fomos finalistas com Cem Vezes Uma, de Ana Brêtas (contos sobre questões sociais e envelhecimento na cidade), Desmemória, de Thalita Coelho (romance de fantasia com protagonistas lésbicas, que também aborda a questão dos relacionamentos tóxicos) e A Mulher que Pariu um Peixe, de Rai Soares (sobre as histórias da avó da autora, mulher quilombola maranhense).