A complexidade da sociedade brasileira pode ser vista em diversos aspectos do cotidiano nas relações entre os cidadãos e as instituições públicas e privadas. Mesmo quando existe consenso em torno de determinado tema, o cumprimento de leis e regulamentos acerca da matéria costuma depender de muita pressão da sociedade. Um bom exemplo é a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), aprovada em dezembro de 2010 após quase duas décadas de debates, mas que ainda não saiu plenamente do papel. Se por um lado somos exemplo global na coleta e reciclagem de latas de alumínio e de embalagens de defensivos agrícolas, de outro ainda não conseguimos dar um destino correto a cerca de 40% do total de resíduos gerados no país. Resultado: o montante que deveria seguir para reciclagem ou compostagem, no caso do lixo orgânico, é encaminhado para os lixões.
Aliás, esses depósitos irregulares deveriam ter sido extintos até agosto desse ano. Contudo, o país ainda conta com algo em torno de 3 mil lixões em atividade. A gestão errática de resíduos causa prejuízos anuais, diretos e indiretos, da ordem de R$ 97 bilhões, de acordo com estudo da SF2 Partners. O problema está aí e provoca consequências trágicas no funcionamento de empresas, na vida das pessoas e no custo das políticas públicas. “E se é um problema de todo mundo, todos devem ser parte da solução”, diz a empreendedora e ativista Flavia Cunha (foto), fundadora da Casa Causa, consultoria baseada em São Paulo e especializada em gestão de resíduos.
E é com foco na busca de soluções e na apresentação de iniciativas exitosas que acontece o Encontro Lixo Zero: Cadê o Lixo que Estava Aqui? Ao longo de sexta-feira (18/10) e sábado, estarão reunidos no HUB Green Sampa, na Praça Victor Civita, em São Paulo, especialistas, consultores e ativistas em todas as dimensões envolvidas neste tema. A entrada é gratuita, mediante inscrição antecipada na página do evento.
Nesta entrevista, Flavia, que se apresenta como “lixólatra”, conta quais são os objetivos do encontro e sua expectativa em torno dos debates, oficinas e dinâmicas que acontecerão ao longo do evento.
“A poluição e as alterações ambientais são consequências de nossas escolhas diárias”
Como surgiu a ideia de organizar esse evento e o que esperar dessa sexta edição?
O evento se concentrará na promoção das melhores práticas relacionadas ao lixo zero, economia circular e sustentabilidade, abordando o desperdício de alimentos, a mudança climática e a legislação sobre doação.
Toda a programação do evento é permeada pela pergunta: Cadê o lixo que estava aqui? Qual o objetivo deste mote?
Nosso objetivo é chamar a atenção para a responsabilidade individual sobre o lixo gerado. Ele funciona como uma chamada para a ação, conscientizando as pessoas de que o lixo não desaparece, mas sim, tem um destino que pode impactar negativamente o meio ambiente. A pergunta provoca reflexão sobre o ciclo do consumo e a importância de dar um destino correto ao lixo, enfatizando que a poluição e as alterações ambientais são consequências de nossas escolhas diárias. Portanto, o objetivo é tanto sensibilizar sobre a causa quanto incentivar a ação.
A PNRS está prestes a completar 25 anos, mas ainda está muito longe de cumprir as promessas e expectativas. Ao mesmo tempo em que o Brasil é exemplo global setores com o de embalagens de alumínio e o de defensivos agrícolas, mas o país ainda convive com lixões. O que falta para tirar as propostas do papel?
Uma articulação entre governo, empresas e sociedade. Acredito que só conseguiremos resolver essa questão se conseguirmos trabalhar a partir de um olhar holístico da questão, com foco nos pontos considerados essenciais:
Comprometimento Político: É necessário um maior comprometimento dos governos em todos os níveis para implementar e financiar a PNRS de forma eficaz.
Implementação de Políticas Locais: As cidades devem adaptar as diretrizes da PNRS à sua realidade, criando estratégias locais que favoreçam a gestão de resíduos.
Educação Ambiental: Investir em educação e conscientização da população sobre a importância da redução, reutilização e reciclagem de resíduos é fundamental.
Articulação entre Setores: A colaboração entre governo, setor privado e sociedade civil pode potencializar iniciativas e recursos, promovendo soluções integradas.
Aprimoramento da Logística Reversa: Fortalecer sistemas de logística reversa para garantir que produtos e embalagens tenham destinação adequada após o uso.
Tecnologia e Inovação: Implementar novas tecnologias que viabilizem processos mais eficientes de reciclagem e reaproveitamento de resíduos.
Fiscalização e Cobrança: Aumentar a fiscalização e implementar mecanismos de cobrança que incentivem a gestão correta dos resíduos e punam práticas inadequadas.
Em suma, um esforço conjunto e coordenado é vital para transformar as promessas da PNRS em realidade e eliminar os lixões no Brasil.
Eventos deste tipo correm sempre o risco de ser uma “pregação para convertidos”. Ou seja: causam muito impacto nos integrantes dos segmentos que já são aderentes a causa. Como engajar aqueles os demais?
Para engajar aqueles que ainda não estão totalmente comprometidos com a causa do Lixo Zero, é fundamental adotar uma abordagem acolhedora e prática, como a que eu, uma "lixólatra", defendo. Acredito que todos são responsáveis e que, se você faz parte do problema, também faz parte da solução.
Influência Pessoal: Como ativista prática e simpática, levo a mensagem do Lixo Zero a todos os lugares, bate-papos informais e situações do dia a dia. Isso ajuda a desmistificar a questão e torna o tema mais acessível.
Conversas Atraentes: Promovo conversas que conectam com as experiências diárias das pessoas, mostrando que pequenas mudanças têm grande impacto. Em vez de apenas falar sobre teorias, exemplifico ações simples que todos podem adotar.
Parcerias com Influenciadores: Trabalho com pessoas que já têm um público, como influenciadores do bem, para amplificar a mensagem. Eles podem ajudar a disseminar a ideia de forma mais convincente e a alcançar públicos mais diversos.
Atividades em Locais Inusitados: Realizo eventos e iniciativas em espaços inesperados, como praças, feiras e cafés, onde as pessoas estão abertas a novas ideias e dispostas a participar. Isso cria um `ambiente fresh´ e diferente para conversas sobre sustentabilidade.
Empoderamento Comunitário: Engajo a comunidade em ações coletivas, como mutirões de limpeza ou oficinas de reaproveitamento de materiais. Isso não só promove a ação, mas também fortalece laços e senso de pertencimento.
Descomplicar a Mensagem: Faço questão de descomplicar a mensagem, tornando-a clara e direta, e sempre reforço que todos podem fazer a diferença.
Dessa forma, podemos transformar a `pregação para convertidos´ em um movimento inclusivo, em que cada um se sinta parte da solução e inspirado a agir.