Na revolução verde, não podemos deixar as mulheres para trás

Na revolução verde, não podemos deixar as mulheres para trás

Com o acordo da COP 28, o movimento global de sustentabilidade a partir de agora será de transição para o fim dos combustíveis fósseis. Vamos caminhar para soluções de energia renovável e neutralidade de carbono. A expectativa é que setores que envolvem essas soluções, como reciclagem, energia renovável, construção e eficiência energética, tenham um aumento na demanda de mão de obra, de acordo com um relatório de outubro de 2023 do Instituto Europeu para a Igualdade de Gênero (EIGE). Só que os empregos gerados serão em áreas ainda muito dominadas por homens: ciência, tecnologia, engenharia e matemática; e setores como o de energia e do transporte, que serão importantes nessa transição, ainda são espaços onde as mulheres encontram desafios para entrar, permanecer e subir de cargo, de acordo com o relatório. Ao redor do mundo, as mulheres são 22% do setor de energia convencional, e 32% do setor de energia renovável. Se não for bem pensada, a transição verde pode causar um aumento da desigualdade de gênero, alerta o relatório.

Não podemos repetir o erro da revolução industrial, que, sem devidamente inserir as mulheres no mercado de trabalho, consolidou o papel doméstico delas na sociedade moderna. Como argumenta a historiadora Louise A. Tilly, no texto “Women, Women’s History, and the Industrial Revolution” (Mulheres, História das Mulheres, e a Revolução Industrial) a revolução industrial permitiu que as mulheres contribuíssem com a renda-familiar, e trouxe uma nova consciência sobre seus direitos e a importância do acesso à educação, mas conforme a renda familiar crescia e as famílias ascendiam financeiramente, os negócios eram tocados apenas pelos homens, limitando as mulheres à condição de administrar a casa e criar uma família respeitável aos olhos da sociedade. Claro, a questão era agravada pelo fato de que as mulheres casadas não podiam ser proprietárias de nada, mas, no fim, elas eram empurradas para o mesmo lugar onde começavam.

Antes da revolução, a contribuição de homens e mulheres no meio rural tinha uma dinâmica em que a importância das tarefas de cada um era mais balanceada, de acordo com um centro de história industrial comandado pela Universidade Estadual de Massachusetts em Lowell. O centro analisou documentos da evolução da indústria têxtil em uma região da Nova Inglaterra, nos Estados Unidos. Lá, os homens comandavam as famílias, mas a contribuição das mulheres ao cuidar dos filhos, costurar roupas e fazer comida era importante. Com o surgimento dos trabalhos nas fábricas e a possibilidade de compra de bens de consumo, o papel das mulheres se tornou secundário: agora, elas precisavam garantir que a casa fosse um lugar harmonioso para acolher o homem trabalhador, que trazia o dinheiro, e criar filhos que se tornassem homens trabalhadores.

Mulheres caminhoneira 1 papo retoCresce o número de caminhoneiras, no Brasil / Foto: A Voz Delas

De acordo com o centro de história, a decaída da vida rural proporcionada pelo crescimento da indústria, pode ter sido o que influenciou as mulheres da região a eventualmente entrarem nas fábricas. Muitas viam o trabalho como uma forma de ajudar suas famílias ou juntar dinheiro para seus casamentos e maternidades. Só que as leis não davam a elas direito à propriedade ao casar, e as que ficavam nas fábricas eram consideradas uma mão de obra mais barata e encontravam barreiras para ascender de cargo e melhorar suas condições de trabalho. Resultado: as que ficaram nas fábricas ajudaram a abrir o espaço da mulher no mercado de trabalho, mas muitas outras casaram ou voltaram para as fazendas.

Até hoje, o papel doméstico das mulheres permanece. Também permanecem o pagamento inferior aos homens e as barreiras para ascender de cargo e ter melhores condições de trabalho. Na indústria europeia de eletricidade e gás, 20% das mulheres em comparação a 34% dos homens, ocupam posições de supervisores, de acordo com o EIGE. Isso indica uma desigualdade na especialização entre as mulheres do setor de energia e obstáculos para elas serem promovidas para trabalhos mais especializados, explica o relatório. Essas mulheres também têm oportunidades limitadas dentro de seu networking e programas de mentoria, de acordo com o EIGE.

Na indústria do transporte, os cargos de importância variam por nível de escolaridade: no baixo nível, mulheres ocupam 9,5% dos cargos de supervisão e homens 9%, de acordo com o EIGE. No nível médio, ambos ocupam 14%. E no nível alto, mulheres ocupam 29%, enquanto homens ocupam 37%. Quanto mais escolaridade exige uma área, menos espaço as mulheres têm de supervisionar o trabalho.

Também há disparidade nas condições de trabalho, de acordo com o relatório. Ao redor do mundo, as mulheres no setor de energia recebem menos do que os homens, de acordo com o relatório. E mulheres em subsetores de energia reportam falta de acolhimento quando se trata de políticas voltadas às responsabilidades familiares, como licença maternidade e paternidade. Trabalhos no setor de transporte tem horários inflexíveis, jornadas de trabalho em horas atípicas e mudanças nos locais de trabalho, o que dificulta o equilíbrio entre o emprego e as tarefas domésticas, de acordo com o relatório.

mulheres energia 1 papo retoTrabalhadoras em plataforma de petróleo /Foto: Agência Petrobras

Em uma pesquisa de 2019 com mulheres do setor de transporte europeu, 39% disseram que as responsabilidades de cuidadoras domésticas as levavam a trabalhar meio período, de acordo com o EIGE. Citando violência contra a mulher, menstruação, menopausa e gravidez, 49% indicaram que seu trabalho não era seguro nem adequado para mulheres. Muitos desses locais de trabalho têm vestiários mistos, por exemplo. Assédio e maus tratos no setor de energia também são citados pelo relatório como fatores que fazem esse setor menos atrativo para mulheres.

A desigualdade de gênero no setor de energia europeu também está ligada a desigualdade na educação dentro da engenharia, ciência, matemática e tecnologia. As mulheres são 36% dos formandos em ciência e tecnologia, e 27% dos estudantes de engenharia, construção e manufatura, de acordo com o EIGE. Escolhas de carreira estão ligadas a estereótipos de gênero. Estudos apontam que a família e os professores dessas áreas também influenciam na escolha, cita o relatório.

Precisamos criar políticas familiares, proporcionar equidade de salários, segurança, especialização, mentoria e oportunidades de networking para as mulheres na transição verde. A mudança também vem dentro de casa, com uma divisão igualitária de tarefas domésticas e um incentivo para que meninas que gostam de exatas estudem dentro de seus interesses. Na revolução industrial, não tínhamos consciência nem dados para fazer uma transição positiva para homens e mulheres. Hoje, nós temos.

Não dá para deixar a história se repetir.

 

 

Isabela Rocha

Autor: Isabela Rocha

Sobre o/a Autor(a) Isabela Rocha é jornalista freelancer. Apaixonada por escrita, comunicação e justiça social, seu sonho profissional é trabalhar para o avanço da igualdade de gênero e do combate ao racismo. Ela acredita no poder democrático das notícias e sempre busca contar histórias relacionadas à diversidade para normalizar a vida de minorias sociais.


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