No mês das mulheres, quem precisa se destacar são os homens

No mês das mulheres, quem precisa se destacar são os homens

Já reparou que toda vez que sai notícia sobre tragédia, os políticos, a mídia e os grupos de ajuda saem em defesa das crianças e das mulheres? “15 pessoas ficaram feridas, incluindo 15 crianças e duas mulheres”, “precisamos proteger nossas mulheres e crianças”. Durante a primeira Guerra do Golfo, a pesquisadora, escritora e professora universitária Cynthia Enloe cunhou o termo womenandchildren (em português, mulheresecrianças) — sim, tudo junto mesmo. O objetivo dela era enfatizar como a mídia tende a falar desses dois grupos como um só, “Eles preguiçosamente juntam os dois termos, como se mulheres fossem crianças, como se não houvesse diferença entre uma mulher adulta e uma criança vulnerável. Essas são presunções extremamente patriarcais.

Elas foram usadas para justificar o impedimento do direito ao voto das mulheres; hoje em dia, elas ainda compõem grande parte do pensamento dos políticos homens por toda a parte, que imaginam que mulheres, como crianças, precisam ser controladas por homens adultos”, ela explicou numa entrevista para a Universidade de Columbia.

Ao colocarmos mulheres na categoria de crianças, criamos a percepção de que elas são pessoas indefesas, frágeis, o que as torna alvo de múltiplas violências, hoje em dia chamadas de violência de gênero. Pegue o exemplo do influenciador Andrew Tate, que vivia propagando o discurso de que mulheres tem que obedecer e ser protegidas por seus homens, que não podem sair sozinhas na rua, que tem que ficar dentro de casa.

Tate e o irmão foram detidos este mês na Romênia a pedido do governo britânico por comandar supostas ofensas sexuais e exploração de pessoas na Grã-Bretanha. Na própria Romênia, eles já estão sendo julgados por suposto tráfico de pessoas e estupro. É esse tipo de pessoas e atitudes que o estereótipo mulheresecrianças fortalece.

No início do ano, conversei com várias fontes para mapear o que vinha por aí, e um comentário de uma especialista me chamou muita atenção. Ela disse que o século 20 foi sobre a ascensão das mulheres, já o 21 vai ser sobre o engajamento dos homens. Não dá para quebrar o ciclo de violências se quem as comete não se dispõe a mudar, comentou. De fato, os homens precisam mudar de atitude e entender que mulheres não são como crianças, são pessoas adultas. Só assim vamos atingir a igualdade de gênero.

Nós não somos vítimas, somos vitimizadas. Existe toda uma performance envolta da vitimização, um protocolo de ação que, na teoria, nos blinda dessas violências: não usar roupas curtas, não chamar atenção, não beber demais, não dar “a ideia errada” para colegas e amigos homens ao interagir com eles, não dançar de forma vulgar…

Outro dia, vi num programa uma especialista falando sobre como as mulheres podem se proteger em carros de aplicativo: elas devem sentar atrás do motorista, ligar as configurações de segurança do aplicativo, deixar a janela aberta, fingir falar no telefone com alguém supostamente esperando por elas em casa, e ficar prontas para, caso haja uma tentativa de assédio — como se o motorista tentar tocar as pernas da passageira — agarrar e levantar o braço do motorista pelo banco — uma espécie de chave de braço — e não soltar até que o ofensor pare o carro e deixe a passageira sair. Na condição de vitimizadas, temos que estar sempre prontas para agir, e fazer de tudo para não dar chance para os agressores.

Cynthia Enloe 1 papo retoCynthia Enloe é a criadora da expressão womenandchildrenEu sempre ando em carros de aplicativo com a janela aberta. Decisão que, na grande São Paulo, me coloca toda vez no mesmo dilema: “eu prefiro correr o risco de assalto ou estupro?” Sempre escolho o assalto, mas a grande verdade é que se não houvessem motoristas que se veem no direito de drogar e estuprar mulheres que andam em seus carros, eu não precisaria fazer essa escolha.

Já vimos múltiplas inovações e o avanço inegável da igualdade de gênero em vários países do mundo: diminuição da diferença salarial, aumento da licença paternidade, delegacias da mulher, programas para aumentar o número de mulheres nas empresas, mulheres se formando na universidade, mulheres votando, mulheres se destacando em áreas predominantemente ocupadas por homens etc.

Mas quando se trata de violência, os casos só aumentam. Entre 2017 e 2022, os registros de feminicídios no Brasil aumentaram em 37%, de acordo com dados do Monitor da Violência. A conscientização ajuda a aumentar o número de denúncias, mas o fato é as mulheres continuam a ser vitimizadas e vistas como alvos fáceis.

Em vez de prevenção, muitas das medidas para combater a violência contra as mulheres focam em punir os crimes já cometidos, o que não vai acarretar numa mudança verdadeira e efetiva a longo prazo. No Reino Unido, um think tank que estuda e faz campanha contra condutas sexuais impróprias está pedindo que universidades compartilhem informações sobre ex-funcionários que deixaram as instituições por causa deste tipo de condutas, de acordo com uma reportagem da revista Nature.

Muitos dos assediadores no meio acadêmico são “assediadores em série”, comentou a revista, citando um estudo. Ao mudarem de instituição de ensino, eles continuam com o mesmo comportamento. Sem o compartilhamento dos dados de má conduta, as universidades contratam esses predadores, perpetuando a violência. De que adianta demitir se o agressor será contratado em outro lugar? Precisamos promover uma mudança de atitudes e focar muito em prevenção.

No mês das mulheres, quem precisa se destacar são os homens. Só assim poderemos combater de fato a violência de gênero. Não somos crianças ou vítimas, somos mulheres adultas. É mais do que hora de sermos tratadas como tal.

Isabela Rocha

Autor: Isabela Rocha

Sobre o/a Autor(a) Isabela Rocha é jornalista freelancer. Apaixonada por escrita, comunicação e justiça social, seu sonho profissional é trabalhar para o avanço da igualdade de gênero e do combate ao racismo. Ela acredita no poder democrático das notícias e sempre busca contar histórias relacionadas à diversidade para normalizar a vida de minorias sociais.


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