Com uma canção também se luta, irmão

É com exclusividade que 1 Papo Reto divulga trechos do livro de Don Filó, como ficou conhecido no Rio de Janeiro o agitador cultural Asfilofio de Oliveira Filho. O texto narra os primórdios do Movimento Black e seus personagens, como Tony Tornado, Tim Maia e Wilson Simonal, e o trabalho das equipes de som, como Soul Grand Prix e Cashbox. Boa leitura:

Esta é a história ainda não contada de diversos negros que se destacaram diante das agruras de uma sociedade racista e elitista que teima em afirmar que o Brasil é uma democracia racial.

Esta é a história não contada do Movimento Black do Rio de Janeiro, Brasil, que surgiu durante o período tumultuado das décadas de 1960 e 1970.

Esta é a história vivida por um jovem líder negro do Rio de Janeiro, que foi assediado e preso por simplesmente querer usar as letras edificantes de James Brown, exibir o seu cabelo afro no melhor estilo blackpower e, com o seu dom de proferir palavras de ordem, ajudar a juventude negra a reconhecer e ter orgulho de sua identidade.

Esta é a história de um artista que surgiu como um “tornado”, burlou o sistema e ganhou a mídia vencendo o V Festival da Canção, no Maracanãzinho lotado.

Esta é a história de um artista ícone que comandou a capela a participação de toda a plateia do Maracanãzinho, cantou para Martin Luther King, mas que, na mesma proporção do sucesso, foi massacrado pela sociedade racista e elitista.

Esta é a história de um artista baiano que passou pela Tropicália e incendiou a Refavela nos primórdios da ditadura militar e que não perdeu a popular elegância ao tornar-se Ministro da Cultura.

Esta é a história contada pelos precursores do Movimento Black Rio, que narram suas histórias de emancipação política – são artistas e intelectuais afro-brasileiros que, a exemplo dos afro-americanos, se valeram de produtos culturais de qualidade como ferramentas para a libertação e o fortalecimento da autoestima da sociedade afrodescendente.

Movimento Black

O Brasil e os Estados Unidos viveram histórias semelhantes de escravidão, de genocídio, de racismo sistêmico, de opressão social que relega a população negra ao nível da pobreza. Mas também se assemelham quanto ao imenso legado cultural com o qual a sociedade afrodescendente vem contribuindo ao longo da história, para o conteúdo artístico de qualidade – especialmente no âmbito da música – nos dois países.

Um dos maiores atores do cenário cultural afrodescendente do país, Don Filó, foi um dos criadores do Movimento Black Rio. Engenheiro cultural, Filó promoveu uma revolução na década de 70 sem saber o rumo que esse movimento tomaria. Ele e um grupo de jovens contribuíram para transformar a dura realidade da discriminação racial com a valorização da autoestima da juventude negra através da música, do cinema, e da literatura, principalmente.

Ampliar fatos históricos e contemporâneos de uma sociedade, fornecendo não apenas um vislumbre da história, mas também o compartilhamento do impacto cultural do passado, propiciando uma maior compreensão do presente e possivelmente do futuro. Atualmente, o racismo é proibido pela Constituição e punido com prisão.

No entanto, os negros no Brasil estão longe de ter seus direitos humanos respeitados. Além disso, o racismo e seus elementos estruturais são difíceis de provar, escamoteados pela retórica da democracia racial.

O Movimento Black no Brasil era na verdade uma combinação de fatores locais, nacionais e transnacionais, resultando na formação de projetos culturais e políticos iniciados no Rio de Janeiro, estendendo-se posteriormente para outras partes do Brasil, além de alcançar a adesão de países da América do Sul, Caribe e África.

O simbolismo Black Power foi encontrado pela primeira vez nas manifestações de protesto nacionalistas negros americanos nos segmentos da música, cosméticos e roupas, na década de 60.

Equipes de som

Os afro-americanos, especialmente, têm utilizado de forma consistente a música como forma de protesto, motivação, libertação e empoderamento econômico.

No Brasil, o Movimento Soul conseguiu sobreviver e se fortalecer nos anos mais repressivos da ditadura militar, que manteve o controle político do País por mais de duas décadas. A presidência do general Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) foi marcada por um boom econômico e sufocante repressão cultural. Em uma atmosfera ultranacionalista, o black soul era menosprezado e castigado (mesmo por alguns negros importantes) por não ser autenticamente brasileiro.

No entanto, a força do soul – música e mensagem – ressoou entre a população negra do Brasil. As festas black no formato de bailes de música soul tornaram-se cada vez mais populares, sob o comando de equipes como Ama Negra, A Cova, A Torre, Apoluisom, Balanço R. Soul, Black Clube, Black King, Black Night, BlackPower, Black R.D, Black Soul, Boot Power, Cap Som, Cashbox, Chicago Disco Sex, Concepção Erótica, Dynamic Soul, Enigma Soul, Equipe Modelo, Furacão 2000, Hollywood, J.B. Soul, JB Santos, Jet Black, Khaunna, Love Power, Luizinho DiscJockey Soul, Olho Negro, Olympic Soul, Petrus, Santos Brazilian Soul ( Ex- CurtiSoul), Sons e Efeitos, Soul Grand Prix, The House of Rock, Tropa Bagunça, Tropical, Truta Soul, Uma Mente Numa Boa, Alma Negra, Vips e Virgiaure, atraindo mais de 10 mil pessoas quando se reuniam no formato de festival de Soul Music.

Como o fenômeno cresceu, músicos brasileiros registraram sua própria marca de “Samba Soul”. Um novo som alinhado ao som de James Brown com o tempero de samba e elementos tradicionais afro-brasileiros surgiu com Gilberto Gil em seu clássico álbum “Refavela”. Tim Maia veio com a romântica “Primavera”, Tony Tornado, com o seu hit “Podes Crer, Amizade”. O clássico instrumental álbum “Maria Fumaça”, da Banda Black Rio, e outros soul brothers como Tony Bizarro, Carlos Dafé, Lady Zu, Cassiano, Banda União Black.

Esses grupos usaram o orgulho negro na sua música e na arte estampada nas capas de disco, ampliando com isso a identidade do Pan-Africanismo no mundo.
Grande parte da recente música popular brasileira trouxe também uma mensagem de resistência negra. No entanto, a música afro-brasileira é muitas vezes arrogantemente descartada e relegada, inclusive o tradicional samba.

Refavela

Alguns artistas de renome ousaram desafiar e alterar este status quo, por sinal considerado bastante perigoso pelo regime militar de 1960 e 1970. Com isso, artistas populares como Gilberto Gil e Caetano Veloso foram exilados, por recorrer ao duplo sentido em suas expressões artísticas, propagando mensagens do orgulho negro.

Já no Brasil, em 1977 a recepção do álbum “Refavela” de Gilberto Gil foi combatida pela crítica através da imprensa na época. A alegação é que Gil deixou de valorizar as raízes afro-brasileiras para cultivar raízes africanas, principalmente alinhadas a cultura afro-americana. Seu apoio ao Movimento Black Rio custou altas críticas ao seu trabalho, mas trouxe importante autoestima para toda a comunidade negra brasileira no momento em que o Black Rio estava prestes a se tornar um dos movimentos culturais, sociais e políticos mais controversos dentro da história contemporânea do Brasil, a partir do Rio de Janeiro.

No entanto, enquanto vários artistas se exilaram – Gilberto Gil e Caetano Veloso foram para a Europa e se aventuraram pelo rock, a maioria teve que permanecer no Brasil e a música soul permeou suas criatividades musicais. Esta nova expressão deixou uma marca bastante expressiva na cultura brasileira e continua até hoje.

Um dos momentos marcantes na década de 60 foi quando Wilson Simonal de Castro compôs com Ronaldo Bôscoli a música “Tributo a Martin Luther King” (ouça ao lado, no nosso player), que tem em seus versos pérolas como: “Cada negro que for, mais um negro virá/para lutar com sangue ou não/com uma canção também se luta irmão/ouvi minha voz, luta por nós/luta negra demais, é lutar pela paz/ luta negra demais, para sermos iguais”.

Tim Maia, o pai da soul music brasileira, foi deportado dos EUA em 1963 sob a acusação de posse de maconha e começou a gravar suas músicas inspiradas na soul music em seu retorno ao Brasil. Em 1970, Tony Tornado, até então um artista desconhecido da grande massa consagra-se no Maracanãzinho como vencedor o V Festival da Canção, patrocinado pela Rede Globo, com a música “BR3”  (no link, entrevista que Filó fez com Tony Tornado 40 anos depois do lançamento da canção), dos compositores Tibério Gaspar e Antonio Adolfo.

Dupla devastadora

Amantes da música soul e da cultura afro-americana, Tornado e Don Filó formavam uma dupla devastadora para os olhos atentos da ditadura, dos conservadores, da esquerda e até dos sambistas mal informados.

Na época, Mestre Candeia comandava brilhantemente o Grêmio Recreativo de Arte e Cultura Negra e Escola de Samba Quilombo, reunindo grandes artistas como Paulinho da Vila, entre outros. Ele pensava diferente sobre a juventude que atuava no soul e tinha um carinho especial pelo jovem produtor, Dom Filó. Para o público em geral, Mestre Candeia era contra os soul brothers, liderados por Don Filó.

Pura mentira!

Era um jogo de cena usado pelo velho mestre e o jovem marqueteiro para venderem seus discos da gravadora WEA (Warner/Elektra/Atlantic), onde ambos foram contratados a peso de ouro pelo big boss André Midani e o produtor musical Marco Mazzola.

Os LPs da equipe Soul Grand Prix lançados a partir de 1977 e o disco “Axé!” lançado em 1978 pela WEA/Atlantic renderam bons frutos na mídia e de venda.

Na segunda-feira, divulgaremos os próximos trechos do livro. Dê uma olhada no site de Filó.