Quando penso em comparar o direito ao aborto nos Estados Unidos com o do Brasil, a primeira coisa que me vem em mente é o debate sobre liberar o procedimento em caso de gravidez por estupro quando a vítima é uma criança.
Pra quem não acompanhou, o estado de Indiana investiga uma médica local que realizou um aborto em uma menina de 10 anos, moradora do estado de Ohio, onde o aborto é ilegal. O caso foi descoberto pelo governo após uma declaração da médica ao Indianapolis Star, um jornal local, dizendo que, por causa da decisão recente da Suprema Corte dos Estados Unidos, a menina teve que viajar para ter direito ao procedimento.
O objetivo da investigação é para descobrir se o aborto havia seguido todos os requerimentos legais do estado de Indiana. E aí, começou o debate: de cada ponta as pessoas discutiam se a menina deveria ter feito ou não o procedimento, se era vida ou não era, se matou ou não matou. Em um protesto em frente a um prédio do governo de Indiana, um cartaz dizia “Uma menina de 10 anos não pode fazer um aborto. Mas [a proibição do procedimento] é sobre salvar crianças, né?”.
Polêmica semelhante a que ocorreu no mês passado, no Brasil, no caso de uma menina de 11 anos, moradora do Rio Grande do Sul, que engravidou por conta de um estupro, mas teve seu direito ao aborto negado pelo hospital público da cidade e ainda foi “aconselhada” por uma juíza a manter a gravidez de risco. O vazamento do áudio da audiência chegou à imprensa e inflamou o debate sobre o direito ao aborto. Esse não foi o primeiro caso em que um procedimento do tipo ganhou as manchetes da imprensa brasileira e mobilizou a opinião pública. Em 2020, uma outra menina de 10 anos, moradora do Espírito Santo, foi estuprada e engravidada pelo tio. Ela conseguiu interromper a gestação legalmente, mas uma ativista pró-vida vazou o nome da vítima e a localização do procedimento na internet, atraindo manifestantes antiaborto ao local. A repercussão foi tanta que a menina teve que mudar de identidade e endereço.
Tanto no Brasil quando nos demais países da América Latina, a “onda verde”, apelido do movimento pró-escolha, vinha tomando força desde 2020, quando o direito ao aborto durante as primeiras 14 semanas de gestação (mais ou menos 3 meses) foi legalizado na Argentina. Agora, sofreu um baque, enfraquecido pela decisão da Suprema Corte americana que, apesar de não ter competência legal sobre a região, tem grande influência política sobre ela.
Para contextualizar, a justiça americana faz decisões baseadas em precedentes. A constituição foi escrita em termos mais gerais, para ser interpretada caso a caso, então, quando um juiz quer tomar uma decisão, o resultado de casos anteriores que sejam parecidos pesa – apesar de ser mais flexível, o sistema tenta manter uma certa consistência. Historicamente, em casos de permissão de aborto, a Suprema Corte havia votado a favor do procedimento, o que agora dá mais liberdade às justiças estaduais de proibir o aborto e incentiva os governos desses estados a criar leis proibindo o procedimento.
Manifestantes diante da Suprema Corte
Os congressistas pró-aborto – que podem aprovar leis federais para combater o efeito da decisão da Suprema Corte – até tentaram votar um projeto de lei para garantir o direito de aborto das mulheres, mas foram batidos pela maioria. Com as mãos atadas pela independência dos três poderes, o presidente Joe Biden também não conseguiu interferir. Ele até soltou um decreto dizendo que o executivo ia estudar jeitos de reverter a situação, mas não pode fazer muito além disso, então pediu que a população vote em líderes pró-escolha para o Congresso nas eleições que acontecem em novembro.
Se você ouvir por aí a expressão “Roe versus Wade” quando ler sobre o assunto, saiba que esse foi o primeiro caso que estabeleceu o precedente a favor do direito ao aborto. Nele, Jane Roe, uma mulher grávida, processou o Texas alegando que a lei antiaborto do estado era inconstitucional por violar seus direitos, e a Suprema Corte votou em seu favor. Wade é o sobrenome de Henry Wade, promotor que defendia o governo do Texas no caso.
No Brasil, a história anda caminhando em uma direção parecida. Um pouco antes de reverterem o “Roe versus Wade”, o Ministério da Saúde publicou uma cartilha na qual afirma que todo o tipo de aborto é crime. Trata-se de um erro, pois a lei prevê a interrupção da gravidez em diversos casos. Após diversas críticas sobre o texto, inclusive de Edson Fachin, ministro do Supremo Tribunal Federal, o governo fez uma audiência pública para revisá-la. Porém, deu um jeito de tentar fazer valer sua posição ao convocar uma maioria de militantes antiaborto para a audiência.
É curioso pensar como num momento em que o combate à violência sexual em ambos os países parece se fortalecer – com assuntos como estupro, assédio, consentimento, além de denúncias circulando muito mais na boca do povo, nas redes sociais, e em veículos de imprensa –, o apoio ao aborto enfraquece. Ficamos mais alerta à proteção das mulheres, mas menos aos seus direitos? Talvez essa falação toda – a meu ver, positiva – reforce a velha crença de que mulheres, com corpos frágeis e indefesos, devem ser protegidas. Ou seja: elas não têm direito de decidirem sozinhas o que é melhor para elas!
Parlamento da Colômbia descriminaliza o aborto até 24 semanas de gestaçãoApesar disso, o direito ao procedimento avança em outras regiões das Américas. O impacto mais recente da “onda verde” foi na Colômbia que, em fevereiro deste ano, legalizou o aborto durante as primeiras 24 semanas (mais ou menos 5 meses) de gravidez. No total, oito países já liberaram ou descriminalizaram o aborto e 10 autorizam em casos excepcionais, estupro ou gravidez de risco (caso no Brasil), de acordo com dados da organização do Centro para Direitos Reprodutivos. Apenas sete proíbem em qualquer ocasião. O mais liberal é o Canadá, vizinho dos Estados Unidos, onde não existem leis contra o aborto. Na verdade, o sistema público de saúde canadense cobre procedimentos realizados até 20 semanas (mais ou menos 4 meses) de gravidez.
Com as eleições deste ano no Brasil, me pergunto se a situação no nosso país será diferente. Lula está à frente nas pesquisas e sua vitória poderia significar uma virada no jogo da flexibilidade de direitos. O ex-presidente já declarou que é contra o procedimento, mas que o tema deveria ser uma questão de saúde pública. Apesar disso, como todo político em campanha, pode estar falando apenas para agradar uma fatia específica do eleitorado. Se ele for mesmo eleito, veremos se era discurso ou compromisso pra valer.
