A costura da Ford

A intensidade dos raios de sol já se fazia notar dentro do acanhado, mas confortável, pavilhão da Casa do Trabalho – A Cidade do Empreendedor, em Camaçari, município da Região Metropolitana de Salvador. Passava das 10h da manhã e o calor podia ser chamado de “infernal” por quem não está acostumado com o outono baiano. Apesar disso, as cerca de 20 mulheres presentes ao recinto permaneciam imaculadamente elegantes em seus vestidos e conjuntos de saia e blusa. Todas muito bem maquiadas e distribuindo afáveis sorrisos aos interlocutores.

No entanto, à medida em que o evento transcorria, ficava cada mais evidente que a emoção iria dar o tom. Afinal, naquela quarta-feira ensolarada, no começo de maio, elas seriam as anfitriãs de um grupo composto por empresários, jornalistas de diversos cantos do país, autoridades locais e executivos de empresas privadas.

Estavam todos ali para conhecer um pouco da trajetória pessoal e profissional de algumas das mais de 100 camaçarienses beneficiadas por um projeto de empreendedorismo, baseado na arte de corte e costura e tendo como pano de fundo a Economia Circular.

A cada relato no talk show, mediado pela cantora Negra Li (gravidésima de sete meses de Noah), ficava a impressão de que não demoraria para que o pavilhão se transformasse num “vale de lágrimas”. De felicidade, é bom que se diga.

As histórias de superação pessoal e as iniciativas de empreendedorismo se sucediam à medida em que cada uma delas ocupava o microfone. A primeira foi Maria Rosa Lima Teles, 69 anos, decana da turma. Sergipana de nascimento, dona Rosa, como ela é mais conhecida, emigrou para Camaçari logo após o casamento. Viúva e mãe de seis filhos, ela enxergou na educação o caminho para crescer. “Todos os meus filhos fizeram faculdade”, diz com indisfarçável orgulho e os olhos marejados.

À bordo de um vibrante vestido vermelho, Sueli Nascimento Souza, 42 anos, não desgrudava o olho do smartphone. A cada minuto conferia as mensagens no WhattsApp para saber se tinha alguma nova encomenda. Autodidata em diversos segmentos do artesanato, ela é uma das mais bem-sucedidas integrantes do grupo de costureiras. “Já vendi uns 40 vestidos apenas na igreja que eu frequento”, conta, para depois exibir um sorriso de satisfação. Orgulhosa, mostra o cartão de visitas onde se lê “Tuy – atelier de costura”.

As redes sociais também funcionam como uma vitrine para Glim Lopes Correia, 34 anos. À frente da marca Morena Flor ela vai produzindo vestidos sob encomenda para festas e roupas para crianças. “Muitas vezes, a peça é vendida antes mesmo de ficar pronta”, vangloria-se. “Basta fotografar e colocar na internet que já aparece comprador. Daqui e até de outros estados”.

Para entender direitinho esta história é preciso recuar ao ano de 2014 e engatar a “quinta marcha” pela BA-535 até Salvador. Até chegar, mais especificamente, ao bairro do Pelourinho, onde fica a sede do Projeto Axé, que atua com crianças e adolescentes em situação de risco social. Parceira da Ford América do Sul, a ONG foi convocada para ajudar a viabilizar a iniciativa do Ford Fund, o braço social da montadora americana, que tinha como meta distribuir 10 mil mochilas, por ano, para os alunos da rede pública de Camaçari. Em dezembro, deve ser batida a marca de 40 mil mochilas e kits escolares de lápis e cadernos entregues.

Em vez de simplesmente comprar as mochilas e doar à comunidade, a direção da Ford, que tem nesta cidade baiana o seu principal polo produtivo no continente, decidiu agregar uma pitada de empreendedorismo e consciência ambiental à iniciativa. Nesta tarefa, a empresa conta com o suporte do Projeto Axé. A matéria prima das mochilas vem dos uniformes descartados pelos funcionários da Ford e, antes de sair da fábrica, as peças são higienizadas.

Mais do que corte e costura, as mulheres que passam pelo curso de Criação e Design de Materiais Sustentáveis são estimuladas a pensar como donas do negócio. “Para isso, elas desenvolvem atividades vinculadas a todas as fases da produção, sem se limitar ao que chamamos de o chão de fábrica”, explica Marcos Candido Carvalho, diretor do Projeto Axé.

Foi a aposta neste protagonismo que incentivou a ex-quase tudo (babá, balconista, diarista, camareira, vendedora de loja, catadora de material reciclável, digitadora, ufa!) Glim a largar o emprego de balconista para se aventurar no mundo da moda. “Foi a forma que encontrei de seguir ganhando dinheiro e participar mais ativamente da educação dos meus três filhos adolescentes”, conta. “Eles estão em uma fase muito delicada, na qual a presença da mãe, no dia a dia, é vital”.

Assim como Glim consegue ficar mais perto de seus rebentos, a direção do Axé viu na atividade de desmanche das fardas, como são conhecidos os uniformes, uma forma de remunerar as mães de alguns dos jovens que participam das atividades cotidianas do Axé, em Salvador.

Cada uma à sua sua maneira, as mães de Camaçari e as da periferia de Salvador vão cuidando de seus rebentos. Sem deixar de empreender e compartilhar o saber e suas ricas histórias de vida. Sem dúvida, emocionante.

O jornalista Rosenildo Ferreira viajou para Salvador e Camaçari a convite da Ford

*Texto atualizado às 22h de 17/05/2017