Depois de contar um pouco a respeito da minha ancestralidade e sobre a arte indígena, carregada de símbolos, afetos e aprendizados espirituais, gostaria de falar da minha relação com as águas, um dos elementos centrais da vida na Amazônia.
Nasci no município de Novo Airão, situado na região metropolitana de Manaus e onde vivem 19 mil pessoas que se conectam aos demais municípios através da floresta. A região é classificada como Unidade de Conservação (UC). Admito que demorei um pouco para entender os termos específicos de cada território dividido entre UCs de competência municipal, estadual e federal. Nessa região conhecida como Mosaico do Baixo Rio Negro contamos com 14 UCs onde estão localizadas cinco cidades: Manaus, Novo Airão, Iranduba, Barcelos e Manacapuru.
O Mosaico do Baixo Rio Negro é um conjunto de áreas protegidas. O meu lugar de vivência e aprendizados faz parte desse grandioso território onde cada qual possui especificidades, mas com um traço em comum: a força do rio Negro. Neste ano, vivemos a maior cheia de todos os tempos. Tudo indica que as mudanças têm relação com as mudanças climáticas. A cheia trouxe muitos prejuízos: casas e comércio inundados e perda da produção agrícola. Mas cada território resistiu e enfrentou os problemas, conforme a realidade e a característica dos rios que a cortam – pois as consequências da cheia se deram jde modo diferenciado em cada região.
O Mosaico do Baixo Rio Negro é um lugar sagrado. Aqui é possível perder a visão entre os tons de verde que parecem não ter fim. Nas épocas de cheia, o rio Negro invade a floresta, assumindo a forma de igarapé (caminho de canoa, em tupi) e fazendo surgir, ou fortalecendo, os igapós: pedaços de floresta formada por plantas aquáticas, como vitória-régia, buriti e a bacaba. Essa cheia se dá quando o rio sobe, geralmente no período de dezembro a junho. No período de seca ou vazante, o igapó torna-se um lugar de vida terrestre.
"Nossa vida gira em torno das mudanças do rio; porque são os rios que direcionam a vida na Amazônia"
Existem muitas pessoas que vivem e tiram seu sustento destas áreas. E eu sou uma delas. Morei com minha mãe Ercília em uma casa à beira do igarapé Santo Antônio. Por isso, nossa rotina diária sempre girou em torno do ritmo das águas.
Nossa principal atividade comercial é a produção de objetos de arte, feitos a partir de insumos coletados na floresta. Mas também dependemos do roçado de mandioca e do peixe para nos alimentar. O turismo, outra atividade importante na região que gerar renda direta no município e nas comunidades, como fator de desenvolvimento social, econômico e cultural. Empreendedor local buscar valorizar seus saberes tradicionais, aonde os visitantes podem conhecer, aprender e valorizar a importância da floresta e os povos que vivem aqui. Somos protetores da floresta, mas não podemos dar conta de protegê-la sozinhos. Essa é uma tarefa de todos!
Hoje, agradeço a minha irmã do universo, Amo, criadora das nascentes dos rios e igapós, por me guiar e ter me abençoado por viver neste lugar. A conexão com o rio é fortalecedora. Reconheço e sinto a força dos espíritos protetores me guiando nas correntezas ou na calmaria das águas.
No início do universo na viagem da Canoa Cobra (canoa transformação) que depois de muito tempo navegando nos mares e rios, o gente peixe (primeiro povo e clã) saiu da canoa e transformou-se nos povos que habitam a terra! Desde a criação do mundo os rios já estavam nos guiando, e o Mosaico do Baixo Rio Negro é a terra para a Umuri mahsã (gente do universo) morar.
O Mosaico possui um tamanho equivalente a duas vezes o Estado do Rio de Janeiro. Não conheço o Rio de Janeiro, mas aproveito para deixar para você, caro(a) leitor(a), um convite para conhecer nossas águas negras. O lugar onde tudo começou!
