Muito mais que apenas um brinquedo

As conquistas sociais e políticas são construídas, normalmente, a partir de pequenas vitórias lideradas por pessoas e instituições. Muitas vezes, seu peso é muito mais simbólico do que efetivo. Mas nem por isso devem ser ignoradas ou ter seu impacto reduzido. Isso porque, elas funcionam como um gatilho para mudanças de comportamento pessoal e empresarial, além de forçarem ao menos uma parte da sociedade a refletir sobre determinado tema.

É neste contexto que surge a linha de bonecas negras Adunni, apresentadas em três modelos e posicionada no segmento de fashion dolls. Trata-se do nicho caracterizado por personagens estilosas, que se tornam objeto do desejo de crianças e até de pré-adolescentes. Ao que tudo indica, o intuito da Estrela, da rede varejista Ri-Happy e do Fundo Baobá, entidade que luta pela equidade racial, foi, de fato, causar. Porém, se ainda não foi capaz de desencadear um debate sobre o racismo institucional, em pleno Natal, Adunni certamente nos lembra da limitação e/ou da quase inexistência de opções de consumo para as meninas negras que desejam ver sua imagem, e seu tipo físico representados como personagens, de forma positiva.

Afinal, não deixa de ser intrigante (para dizer o mínimo) que num país composto por 53% de afrodescendentes as pesquisas mostrem que apenas 3% das bonecas à venda têm a pele negra. Para chegar a este percentual, as psicólogas Ana Marcilia e Mylene Alves, e a artista plástica Raquel Rocha fizeram um trabalho impecável e bastante meticuloso. O estudo deu origem à campanha Cadê Nossa Boneca?*, lançada no início deste ano em uma página no Facebook.

No entanto, nem seria necessária tanto esforço para descobrirmos o quão diminuto é a presença de heróis negros, ou mesmo bonecos e bonecas de pele negra, nas redes varejistas. Diferentemente do que acontece nos Estados Unidos, por exemplo, onde a gigante Mattel tem entre suas alavancas de vendas a versão negra da linha Barbie, a fashion doll mais famosa do planeta.

Posicionada na mesma faixa, a linha Adunni (que na língua iorubá significa a doçura chegou ao lar) é comercializada por entre R$ 79,99 (a versão bebê) e R$ 89,99 (a fashion). Neste ponto é preciso lembrar que, apesar de raras, as bonecas negras existem e ganham vida nas mãos de artesãos e fabricantes de brinquedos educativos usados em programas de diversidade. A pioneira nesta última linha foi a loja Preta Pretinha**, cuja sede está situada na Vila Madalena, bairro de classe média alta na Zona Oeste de São Paulo. O problema é que, raramente essas bonecas chegam à mídia, tampouco ocupam um lugar de destaque nas prateleiras das lojas.

A diretora-executiva do Fundo Baobá, Selma Moreira, conta que mais do que apenas lançar uma boneca, a parceria Estrela-Ri-Happy-Baobá embute conceitos mais amplos. Um deles é o do marketing ligado à causa. Uma parte dos recursos obtidos com as vendas, feitas exclusivamente pela Ri-Happy, serão destinados aos programas de equidade racial liderados pelo Baobá.

Nesta entrevista exclusiva a 1 Papo Reto, a diretora-executiva do Baobá destaca que a venda de produtos focados na comunidade afro-brasileira é importante. Contudo, deixa claro que a equidade racial vai além do consumo de bens e serviços. “É importante dizer que a luta pela promoção da população negra busca gerar ganhos para toda sociedade, pois quando deixamos mais de 50% da população para trás fica impossível pensar em desenvolvimento e progresso”. A seguir os principais trechos desse instigante bate papo.

“O BRINQUEDO (PARA O) NEGRO NÃO PRECISA, NECESSARIAMENTE, SER O MAIS BARATO, PARA VENDER”

Como se deu esta parceria com a Estrela e a Ri-Happy. Quanto tempo duraram as negociações até o efetivo lançamento dos produtos?

Iniciamos as tratativas no primeiro semestre deste ano. Foi um processo muito produtivo onde cada parceiro contribuiu com sua expertise na condução do projeto.

Não é segredo para ninguém que a comunidade afro-brasileira está na base de pirâmide de renda. Por conta disso, o preço de um produto pode ser decisivo no momento da compra. Isso foi levado em conta na hora da precificação das bonecas?

Existem, sim, bonecas mais baratas, mas uma grande preocupação que tivemos foi justamente não trazer esta realidade negra na pirâmide de renda como foco da proposta, justamente para não limitarmos a inserção da boneca à população de baixa renda, mas que ela ficasse em um patamar de preço que pudesse ser acessível também à população de baixa renda.  Precisamos entender e explicar que o negro tem sim poder de consumo e precisamos reforçar esta ideia, o `brinquedo negro´ não precisa, necessariamente, ser o mais barato para vender.

As bonecas estão com preço competitivo se levarmos em consideração o posicionamento deste produto no mercado e as outras linhas de boneca com o mesmo apelo. Para o início da parceria decidiu-se pela produção de três bonecas de duas linhas diferentes.

O Fundo Baobá possui uma grande articulação junto às empresas, atuando basicamente com programas e projetos. Vocês pensam em lançar novas ações de consumo com propósito, como essa celebrada com a Estrela e a Ri-Happy?

Sinceramente gostaríamos de ter mais empresas de diferentes portes e ramos desenvolvendo produtos direcionados para os afro-brasileiros. Somos mais da metade da população e movimentamos uma quantidade expressiva de recursos, portanto direcionar a atenção na produção e comercialização para a população negra é uma excelente oportunidade de negócios. Entretanto é importante frisar, que precisamos por qualidade, atendimento e representatividade neste processo. Queremos nos ver nas propagandas e nas mídias, afinal somos consumidores de peso.

Como é falar em marketing ligado a causas num momento delicado como este, do ponto de vista econômico?

É neste momento que este tipo de temática se torna mais estratégica. Sabemos que por conta da severa crise política e econômica que vivemos, o consumo está profundamente afetado, mas a intenção de consumo não. Levantarmos a bandeira que mesmo neste momento complexo podemos comemorar pequenas vitórias, pois conseguimos mobilizar a indústria de brinquedos a se movimentar em relação à representatividade e diversidade racial, diz muito. Queremos fortalecer a mensagem de que investimentos são realizados no sentido de promover a equidade e a diversidade mesmo em tempo de crise. E isso reflete a nossa estratégia que reforça a urgência de se promover ações, tanto da iniciativa pública quanto da privada, para que tenhamos um futuro mais justo.

Quais os principais desafios no campo da equidade racial no Brasil, ainda estamos muito atrasados em relação ao restante do mundo?

Talvez o grande desafio seja trazer à luz o racismo estrutural e institucional que existe e é totalmente ignorado, gerando reflexos perversos para a população negra, em função da redução de oportunidades. Mas é importante dizer que a luta pela promoção da população negra busca gerar ganhos para toda sociedade, pois quando deixamos mais de 50% da população para trás fica impossível pensar em desenvolvimento e progresso, se não for para todos e todas.

Muitos brasileiros ainda acreditam que não existe racismo e a negação é um problema, porque dificulta imensamente o desenvolvimento das propostas relacionadas ao tema, afinal de contas como resolver o problema do racismo, se ele não existe? Precisamos todos juntos promover uma sociedade onde todos e todas possam ter oportunidades. Esta é a nossa luta!

*Cadê nossa boneca?

** Saiba mais sobre a loja Preta Pretinha