São Paulo não é, definitivamente, uma cidade para amadores. Apesar de muitos renegarem a música “Sampa”, de Caetano Veloso, por considerarem-na uma cópia não autorizada de “Ronda”, do mestre Paulo Vanzolini, cientista e sambista de boas cepas, é inegável que alguns versos na canção do compositor baiano nos mostram que a beleza desta cidade é única.
Mas, para enxergar as peculiaridades desta cidade não precisa necessariamente ser um compositor famoso, muito menos poeta, nem tampouco cientista. Basta ter sensibilidade e gostar de contar e, principalmente, ouvir histórias. Boas histórias.
Foi isso que descobriu desde muito cedo a paulistana da gema Keli Vasconcelos. Jornalista de formação, ela tem feito carreira como cronista do dia a dia. E em uma cidade que abriga quase 12 milhões de habitantes, o que não falta é assunto.
Basta abrir a porta de casa e caminhar pelas ruas, embarcar no ônibus, no metrô ou no trem – que invariavelmente atrasam o que acaba rendendo ainda mais motivos para prosas.
Sobre o quê? Sobre a vida, ora bolas.
E é nisto que Keli vem se especializando. Um bom exemplo de seu trabalho pode ser conferido no recém-lançado “São Miguel em (uns) 20 Contos Contados”, que sai pela editora InHouse e integra a coleção Jornalirismo. Ao longo de 136 páginas o leitor é levado a fazer uma viagem, melhor, uma imersão neste cantinho do universo chamado São Miguel – um bairro que fica no extremo da Zona Leste.
Sim, é longe.
Longe até mesmo para quem mora na Zona Leste, a mais populosa região da cidade, onde vivem cerca de quatro milhões de pessoas ou, para ficar mais claro, um Uruguai inteiro. Mas a distância em relação ao centro (o que muitas vezes causa dissabores devido às dificuldades em matéria de transporte e à baixa qualidade dos serviços públicos) acaba ajudando.
“Quando trabalhei em uma empresa da Zona Norte, levava três horas para ir, e mais três para voltar. E ainda tinha de dar uma pernada de cerca de 15 minutos”, recorda Keli. “Em vez de ficar reclamando, usava este tempo para conversar com as pessoas e ia colecionando histórias.”
Nestas andanças, Keli acaba funcionando também como cicerone de quem deseja conhecer a pauliceia desvairada. Desde seu marco financeiro, a avenida Paulista, até mesmo a experiência de quem atuou como voluntária na Copa do Mundo.
Neste ponto torna-se necessária uma pausa. Até mesmo dramática.
Com a maior sem-cerimônia, Keli diz não gostar de futebol. “Não ligo a mínima para esse esporte. Simples assim!”, responde a jovem ao ser questionada sobre seu time de coração. Para quem vive em uma região na qual a saudação de praxe é “Vai Corinthians!” parece sacrilégio ignorar o esporte bretão, tampouco não torcer pelo timão.
Mesmo com este distanciamento em relação ao esporte, Keli acabou vivendo momentos inesquecíveis, eternizados em crônicas (claro!) sobre sua experiência como voluntária na Copa do Mundo 2014.
Mas em se tratando dessa paulistana que vive da prosa que recolhe nas ruas, nada poderia ser óbvio. Mesmo. “Colocaram-me para atuar no setor de credenciamento de um dos eventos paralelos à copa”, conta. “Só que minha base ficava em um hotel na Zona Sul da cidade.” Mais três horas de busão, metrô e trem até o local.
Nada que tenha conseguido abalar a jovem sonhadora, que busca lirismo no dia a dia e até mesmo nas conversas com um muro. Não um muro qualquer, mas sim aquele de sua infância, retratado em “O Portão e o Muro”, no qual ela fala sobre perdas, com a simplicidade e a poesia características de uma criança de seis anos.