“Meu coração chora todos os dias”

“A vida do meu filho está se acabando. Já nem tenho lágrimas para chorar. Mas o meu coração chora a todo instante”. O desabafo feito por dona Adriana Oliveira Braga desnuda uma parte do sofrimento vivido por esta carioca de 47 anos. Mãe de sete filhos, ela alterna sentimentos de resignação, raiva e angústia ao falar do caso do primogênito, Rafael Braga Vieira, 28 anos, tragado num dos labirintos da Justiça penal do Rio de Janeiro.

Em 20 de abril, ele foi condenado a 11 anos e cinco meses de reclusão, além de multa de R$ 1.687, acusado de tráfico de drogas e associação criminosa. As provas? O depoimento de PMs que o prenderam com 0,6g de maconha, 9,3g de cocaína e um rojão. “Meu filho não é criminoso. Nunca se meteu com o tráfico”, dispara Adriana, com a firmeza típica das mães que conhecem bem cada integrante de sua prole.

A sentença, proferida pelo juiz Ricardo Coronha Pinheiro, não é somente mais um capítulo em meio a um processo que se tornou conhecido mundialmente pela forma como vem sendo conduzido. Mas uma obra Kafkiana sob diversos aspectos. A começar pelo rigor da pena (se levarmos em conta que o réu seja culpado), passando pelas circunstâncias que cercam todo os casos que envolvem Rafael.

Para entender essa história precisamos recuar à noite de 20 junho de 2013, período no qual as manifestações populares por mais qualidade dos serviços públicos e pela participação popular começaram a explodir nas principais capitais do País. Na época, a atuação de grupos radicais, conhecidos como Black Blocs (envolvidos na depredação de lojas e equipamentos públicos), ajudou a elevar a temperatura.

Às vezes, literalmente, por conta do uso de coquetéis molotov contra a PM, em revide à farta utilização de balas de borracha, granadas de efeito moral e bombas de gás lacrimogênio. Foi neste caldeirão que Rafael foi preso, acusado de portar material explosivo (coquetéis molotov) quando, na verdade, estava com dois frascos de Pinho Sol, produto usado em limpeza de banheiro. Resultado: saiu da delegacia direto para o Complexo Penitenciário de Japeri, onde ficou cinco meses até ser condenado, em dezembro do mesmo ano, a cinco anos e 10 meses de reclusão.

Na época de sua detenção, Rafael trabalhava como catador de latas e outros materiais recicláveis, na região central. Para economizar o dinheiro da passagem entre o Centro e a Vila Cruzeiro, por vezes ele dormia num casarão abandonado. “Ele começou a trabalhar como engraxate aos oito anos e quando passou a mexer com reciclagem, saía de casa às 5h da manhã”, lembra Adriana. “Nunca deixou faltar nada em casa. Sempre voltava com uns trocados ou então algum alimento que ele pedia na porta do supermercado”.

Corrente de solidariedade

Contando apenas com o trabalho militante do Instituto de Defensores de Direitos Humanos (DDH), a situação processual de Rafael não tem evoluído. Ao contrário. Cada vez piora mais. Por conta disso, foram criados diversos núcleos de apoio e luta contra sua condenação. Ao encerrar a entrevista, por telefone, a 1 Papo Reto, dona Adriana fez questão de agradecer pelas manifestações de carinho e de solidariedade que tem recebido de vizinhos, parentes e por parte dos ativistas.

Um dos atos de apoio à família e contra a “flagrante injustiça e evidente perseguição a um jovem negro e favelado”, de acordo com a avaliação de entidades de direitos humanos, acontece hoje à noite, na Cinelândia, região central do Rio. “Daqui a pouco vou para lá”, conta a mãe de Rafael.

Os ativistas paulistanos também têm participado desta jornada. A última ação deles ocorreu na segunda-feira (24/4), na avenida Paulista, o coração financeiro da cidade. Portando cartazes contra a arbitrariedade policial, o racismo e a atuação da Justiça, centenas de pessoas marcharam entre o vão livre do Museu de Arte de São Paulo (Masp) e a esquina com a rua Augusta, onde fica o escritório da Presidência da República.

Em praticamente todos os discursos de representantes dos diversos coletivos sociais surgia a lembrança de uma história sobre abuso policial e a complacência da Justiça, pois o que tem vigorado nestes casos é a impunidade. “O judiciário é fruto da estrutura racista da sociedade brasileira”, disparou Débora Maria da Silva, uma das líderes do grupo Mães de Maio. O grupo luta para colocar na cadeia os assassinos dos filhos e parentes mortos durante a onda de matança ocorrida no estado, em maio de 2006. Na época, havia um clima de “guerra” entre os integrantes do crime organizado e a forças públicas do estado.

“Meu filho, Edson Rogério dos Santos, trabalhava como gari. Morreu apenas por ser preto”, diz com um misto de raiva e indignação. “Mesmo que não fosse trabalhador, a polícia não tem autorização para decretar a pena de morte”. Na mesma linha discursaram integrantes do grupo das Mães de Osasco, do Movimento Negro Unificado, do Movimento Social das Periferias entre outros.

Suspeito padrão

De fato, as estatísticas mostram que se pode falar em extermínio quando o assunto é a morte de jovens negros, no Brasil. Todos os dados disponíveis confirmam este adágio. De acordo com o Mapa da Violência, a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no país. Comparando-se com a população branca, a relação de mortes é para lá de desigual: 36,9 óbitos a cada grupo de 100 mil habitantes ante 9,6.

Neste contexto, o ocaso de Rafael pode ser explicado, em parte, pelo racismo estrutural que permeia e cresce na sociedade brasileira. “Negro, pobre e favelado, este é o perfil do `criminoso padrão´, segundo a visão de boa parte da sociedade”, desabafou o presidente do Movimento Negro Unificado, Milton Barbosa. O jovem ativista Douglas Belchior, bacharel em história e fundador do Uneafro, rede de cursinho pré-vestibular comunitário, seguiu a mesma trilha. “Tudo que se construiu neste país foi sobre o cadáver de nosso povo”.

Apesar do grande aparato policial na área de dispersão do evento, a PM não interveio um minuto sequer. Nem mesmo no momento em que os manifestantes fecharam uma das pistas da Paulista, às 18h45, em plena hora do rush. Neste instante, um casal de PMs foi conversar com os organizadores da passeata, batizada de Vigília Contra a Condenação de Rafael Braga, e se limitou a anotar seu nome e telefone.

Ao longo do trajeto, todas as palavras de ordem tinham como mote a parcialidade da justiça, a violência policial contra negros e pobres e os pedidos do fim da PM. Os cânticos foram amplificados diante do prédio que abriga o escritório da Presidência da República. Impassíveis, os cerca de 30 PMs que montavam guarda no local se limitaram a assistir o protesto.

Melhor assim.

SAIBA MAIS SOBRE:

A campanha em defesa de Rafael Braga Vieira

Sobre o extermínio de jovens negros, no Brasil

Sobre o aumento da letalidade policial, no Rio

Sobre a desproporcionalidade da pena aplicada a Rafael Braga

Perfil da população carcerária no Brasil

Texto atualizado às 9h07, de 26/4