Certamente, legislar em uma cidade como São Paulo não deve ser fácil. Algumas leis, porém, parecem que nascem motivadas por boas intenções e, pelo caminho, se transformam até tornarem-se verdadeiros “frankeinsteins”. Esse é o caso da nova lei de zoneamento da capital paulista, aprovada na tarde de ontem, 25/2, por 45 votos a 8 – o projeto havia sido enviado à Câmara dos Vereadores pela Prefeitura e teve primeira votação em dezembro do ano passado.
O Projeto de Lei (PL) 272/2015 foi idealizado com o objetivo de incrementar a moradia popular e aumentar a atividade econômica nos bairros considerados os principais eixos da mobilidade urbana. Porém, sofreu tantas alterações na última hora que até os vereadores dizem desconhecer o teor do texto aprovado cujo relator é o vereador Paulo Frange (PTB).
Para Ricardo Young (Rede), o PL virou um “monstrengo”. Para o vereador Andrea Matarazzo (PSDB), faltou “tempo para analisar” tudo, e para Gilberto Natalini (PV), trata-se de um projeto “predador ambiental”. Também votaram contra o PL Abou Anni (PV), Aurélio Nomura (PSDB), Mário Covas Neto (PSDB), Patrícia Bezerra (PSDB) e Toninho Vespoli (PSOL).
A sessão começou às 13h. Os ânimos estavam acirrados na galeria do andar superior do plenário do prédio anexo à Câmara. Faixas penduradas na parede indicavam interesses diversos – desde os mais gerais como “Paulistanos querem emprego” (para liberar os corredores comerciais e incrementar as áreas industriais), passando pelos diretos e retos, como “Parque Anhanguera contra o lixão”, e os prolixos e explicativos como “Vila Beatriz – não às mudanças no zoneamento que trarão prédios altos, trânsito, barulho, poluição e grande comércio”.
Muitos dos presentes uniam-se em torno do ideal da luta por uma cidade mais sustentável: lixão em bairros, nem pensar. Parques com prédios, também não. Poluição sonora, também não.
O difícil é agradar a todos, comentou um vereador na tribuna.
Por isso, é que alguns princípios do desenvolvimento sustentável observados em cidades icônicas como Copenhague, capital da Dinamarca, são importantes. Uma cidade com poluição sonora pode? Não pode, mas passou a proposta que amplia o volume permitido de decibéis. Uma cidade com menos verde pode? Não pode, mas nem todas as áreas verdes ganharam a proteção e o status de Zepam (Zona Especial de Proteção Ambiental). Uma cidade com edificações em área de manancial pode? Não pode, mas passou…
Na galeria, o povo gritava: “Vergonha”, “Especulação Imobiliária”, “Au au au, PL ilegal” e outras palavras de ordem. Alheios aos protestos, os parlamentares e a direção da Câmara, favoráveis ao projeto, aceleraram o ritmo da votação. “A bancada do PT e dos aliados veio unida”, comentou a assessora de um dos vereadores contrários ao projeto de lei.
Do lado dos manifestantes também era possível ver grupos mais organizados na defesa de seus interesses. Um deles era composto por dezenas de moradores do Jardim Marajoara, todos uniformizados com uma camiseta verde com os dizeres “Movimento ZER Marajoara”. O objetivo era manter o bairro como Zona Estritamente Residencial.
Sopa de letras
A terapeuta holística Lilian Christine Weinheimer (na foto ao lado) fazia parte do grupo. Moradora deste bairro da zona sul desde 1999, foi à Câmara para tentar impedir que a região se tornasse uma ZCOR II (tipo de corredor comercial). “O Marajoara é considerado o pulmão de Santo Amaro”, argumentou. Deu certo. O grupo pressionou, pressionou e conseguiu manter o Marajoara verde. “Para nós, ficou OK, mas vamos continuar ajudando os outros.”
Pensar numa cidade como um todo, e não fragmentada – parecia o raciocínio dos moradores do Marajoara, que permaneceram até o final da votação. Apoiando, inclusive, causas complicadíssimas, como a do pessoal da Rede Novos Parques, que luta contra o avanço do setor imobiliário em causas polêmicas como o Parque Augusta, na região central, e o Parque dos Búfalos, na zona sul, à beira da Billings. Neste último, que não ganhou status de Zepam, serão construídas dezenas de torres residenciais (veja aqui).
Mais barulhenta e caótica
As paulistanas Susan Pearson, designer, e Renata Bastos, pesquisadora e astróloga, eram contra a mudança dos decibéis – o limite em bairros com baladas, como a região da Consolação, que elas defendiam, passou de 40 para 50 decibéis. Muitos carregavam faixas semelhantes às usadas para demarcar o limite de velocidade em ruas.
“Você já passou na Peixoto Gomide à noite? Os ambulantes ficam no meio da rua, é possível comprar de tudo, até drogas, tudo por R$ 10, R$ 20… É terra de ninguém. Uma vez eu buzinei, pois não conseguia ir para o meu prédio, e um cara jogou uma pedra no meu carro”, lembrou Renata. Susan resumiu, citando o clássico do cineasta italiano Roberto Rosselini: “Sabe ‘Roma, Cidade Aberta’? Então, o cenário é parecido.”
Do outro lado da galeria, tinha a turma do “aprova”. Muitos comerciantes com longa tradição nestes bairros queriam ter seus interesses atendidos. Gisele Rosenboim era uma delas. Proprietária de um ponto comercial na Rua Gabriel Monteiro da Silva, pleiteava mudança do uso do imóvel. “Estou entre a Rua Hungria e a Avenida Faria Lima. Tenho muitas restrições, não posso alugar para pizzaria, para show-room.” Ela quer que o pequeno trecho urbano se torne ZCOR2 (tipo de corredor comercial).
O tempo passava, e os ânimos ficavam cada vez mais acirrados. O líder do governo, Arselino Tatto (PT), estava visivelmente nervoso. Lá pelas tantas, um pedido de vistas do vereador Aurelio Nomura despertou sua ira. Aos gritos, Tatto protestou: “Não pode, é contra o regimento”.
Os ativistas mais animados optaram por performances. Dois rapazes da ONG Minha Sampa vestiram-se de árvore e conseguiram entrar no plenário para chamar a atenção de parlamentares e dos fotógrafos que cobriam a votação. Do lado de fora, em frente à Câmara, havia um burburinho. Era o pessoal do Parque dos Búfalos que optou por ficar apenas de peças íntimas, ou quase nus, com “tarjas pretas” de tecido cobrindo a genitália, no caso dos homens.
“Estão nos depenando lá dentro, então tiramos a roupa aqui fora”, afirmou Wesley Silvestre Rosa. O mais conhecido (e também mais visado) ativista dos Búfalos acabou sendo detido pela polícia e encaminhado à delegacia. Mais tarde, foi liberado.
Nos próximos dias, a lei que torna a cidade de São Paulo menos verde do que já é será publicada no Diário Oficial, com as emendas aprovadas. Ela vai vigorar pelos próximos 15 anos. Pelo menos é que esperam a prefeitura e seus aliados na Câmara. Mas se depender da oposição, o jogo ainda terá prorrogação. Isso porque, os parlamentares pretendem recorrer à Justiça.