Meu nome é Isadora, tenho 24 anos e passei todos esses anos tendo todas as oportunidades que milhares de mulheres negras brasileiras sequer têm a perspectiva de obter. Nasci em um hospital particular, a uma quadra do apartamento em que vivi por 22 anos da minha vida. Quando recém-nascida, fui cuidada com muito amor e tempo pelos meus pais.
Frequentei uma creche do outro lado da minha rua e passei todos os 13/14 anos de ensino fundamental e médio em uma escola de classe média-alta, a 5 minutos a pé de casa. Fiz quase uma década de um curso de inglês excelente, a 15/20 minutos de distância (a pé) de casa. Passei para uma universidade federal praticamente no final da minha rua e, ainda assim, às vezes me dava ao luxo de pegar um ônibus até ela.
Digo tudo isso porque sou grata pela vida privilegiada que tive, mas reescrevo minha história refletindo sobre toda a outra gigantesca parcela da população que não teve a mesma “sorte” de trilhar todo esse caminho que hoje me faz estar prestes a me tornar mestra, daqui a dois meses.
Falta bem pouco para isso, então estou na reta final da entrega da minha dissertação. Quando não passo o dia escrevendo – no computador caríssimo que minha mãe me presenteou –, passo as horas culpada por não estar redigindo. Por estudar desigualdade racial, nesses últimos meses eu acordo e durmo lendo sobre a precária situação da população negra no Brasil, a importância da representatividade e de discutirmos a interseccionalidade de gênero e raça.
Estou tão dentro dessa “bolha”, que este texto mais parece acadêmico do que político.
Mas, hoje, no intervalo entre uma leitura e outra, me deparei com uma matéria que me fez sentir sangrar pelos olhos. O famigerado BBB, em sua 16ª edição, traz como parte de uma decoração “divertida” um boneco com o cabelo crespo e armado que, na verdade, é uma palha de aço para lavar louça.
Não sei para melhor ou pior, a notícia não me causou tamanha surpresa pelo fato de um produto como esses existir. O que me impressiona nesse caso é a falta de preocupação que uma emissora internacionalmente conhecida, e que domina a mídia brasileira, com as possíveis interpretações que o boneco poderia levantar.
Não me entendam mal. É claro que a persistência do racismo e a existência de pessoas racistas são o problema. Nesta situação, porém, me assusta que não tenha uma alma viva que, no momento de revisão final, diga: “Equipe, o boneco é mesmo bem divertido, mas acho que não vai cair bem nesse mundo do politicamente correto”.
Para onde estamos indo? É preciso que eu me depare com essa história, me indigne e publique linhas e linhas de reclamações para que alguém note que isso é racista?
E antes que me digam que meu desconforto é exagero, que o termo “racista” é muito pesado e que a intenção da pessoa responsável por isso nunca foi ofender, eu digo em alto e bom som que isso é racismo. Essa “brincadeira” é ofensiva em tantos níveis que mal consigo me explicar.
Ofende-me por todas as vezes em que eu quis me ver representada em bonecas, em desenhos, em filmes e em seriados e, quando me achei, “eu” não tinha nada a ver comigo.
Ofende-me por eu ter crescido me achando feia, achando meu cabelo ruim e me condenando por ser tão diferente das minhas amigas.
Ofende-me pois, depois de anos tentando alisar, esticar e abaixar meu cabelo, as pessoas toquem meus cachos e se surpreendam com o quão macio e bonito ele é.
Ofende-me por eu ter passado quase duas décadas da minha vida aplicando química no meu couro cabeludo e gastando rios de dinheiro para, simplesmente, não me parecer comigo mesma.
Ofende-me também por saber da existência de muitas pessoas que ainda não conseguiram se desvencilhar dessa luta por uma aparência física racista.
Por todos esses motivos, eu me recuso a servir de exemplo para aqueles que defendem que o racismo brasileiro não é tão ruim assim.
Eu me recuso a ser vista como exemplo de meritocracia, como um exemplo esfregado na cara de todos/as outros/as pretos/as do Brasil que diz que se eles/as são excluídos/as, prejudicados/as, perseguidos/as, assassinados/as, não é por culpa de ninguém.
Ignorar o racismo não faz com que ele desapareça. Não faz com que ele doa menos e essa “brincadeira” nunca será inofensiva.
Vai por mim! Esses dias li um texto escrito pela Stéphanie Paes, publicado no site do Geledés, que representa exatamente o que eu poderia tentar dizer agora: “Ninguém vai te tratar como branco se você conseguir vaga em um colégio disputado, ninguém vai te tratar como branco se você for no shopping pela primeira vez com suas amigas brancas de classe média, nem os seus amigos brancos de classe média vão te tratar como branco. Porque raça não some com status social, e as relações de poder não vão te possibilitar exigir tratamento igual se você for negrx. E, principalmente, quando você ocupa um espaço que historicamente não é seu, as pessoas vão fazer de tudo (como fizeram comigo) pra te lembrar de que aquele não é o seu lugar.” (Leia a matéria completa em: “Estudar com a classe média, jogar bola com a periferia“).
E ninguém vai mesmo. Entendam: sua não intenção de me ofender não diminui a sua ofensa e não isenta você de reproduzir o racismo.