O futuro passa pela conexão Amazônia-Pelourinho

O futuro passa pela conexão Amazônia-Pelourinho

No imaginário de muitas pessoas, Belém e Salvador seriam universos distintos. Enquanto a primeira está situada no coração da Amazônia e tem na cultura indígena um de seus maiores atributos e acervos, a outra foi erguida às margens do oceano Atlântico e carrega a ancestralidade africana como traço mais vivo de seu DNA. Pois fiquem sabendo caras e caros leitores que existem muito mais conexões que antagonismos entre as duas cidades. E foi com isso em mente que o cofundador da Vale do Dendê, Paulo Rogério Nunes, anunciou o tema da edição 2026 do Festival Afrofuturismo: Os Algoritmos das Florestas. A inspiração veio em meio à participação na COP30, realizada em Belém, no início de novembro, onde participou de atividades na Blue Zone, local no qual acontecem as negociações multilaterais. “Saí de lá maravilhado com a potência e a energia de Belém, muito similar à de Salvador”, conta Paulo Rogério. “E a partir daí ficou muito evidente que os ativos tecnológicos criados e difundidos pelos povos originários e os quilombolas deveriam nortear o Festival Afrofuturismo.”

De fato, existe muita tecnologia indígena e muita influência afro-brasileira na preservação e nos saberes que compõem a Amazônia Legal, região na qual o Brasil é ainda mais negro, com 75,1% da população se declarando preto ou pardo. Mas, antes de avançarmos para 2026, é preciso falar de tudo que rolou no segundo dia do Festival Afrofuturismo Ano VII, que celebrou os Ancestrais do Futuro, a partir de palestras, rodas de conversa, ativação de produtos, feira de empreendedorismo e muitos shows musicais, envolvendo todas as faixas etárias em diversos espaços do Pelourinho, no Centro Histórico de Salvador.

Mateus heloi hackathon afrofuturismo

Uma dessas atrações foi comandada por jovens universitários envolvidos na maratona hacker que juntou estudantes de Engenharia de Software da Universidade Católica de Salvador (UCSAL). Eles foram desafiados a buscar soluções práticas e acessíveis para mitigar os impactos da crise climática no dia a dia das pessoas. A equipe vencedora foi a Impact Codens, que levou para casa um cheque no valor de R$ 4 mil, pelo desenvolvimento de um aplicativo capaz de criar uma linha direta entre o poder público e os cidadãos. “O chatbot para Whatsapp permite que cada morador da cidade informe com fotos e geolocalização a ocorrência de problemas do cotidiano, com potencial de agravar os efeitos das mudanças climáticas”, destaca Mateus Helio (de óculo, na foto acima). “São buracos na via pública, árvores em processo de degradação ou encostas de morros comprometidas pela ação da chuva que caso a solução se dê com rapidez, podem evitar danos maiores, inclusive a perda de vidas.”

Aliás, o debate de ideias e a reflexão coletiva acerca dos dilemas que afetam o dia a dia de pessoas, órgãos públicos e empresas foi o que norteou o talk liderado por Paulo Rogério no qual ele apresentou seu terceiro livro: Vamos Falar de Futuro (leia mais detalhes na entrevista abaixo). Publicado em formato “caixinha” a obra é composta de 100 perguntas que dialogam com questões contemporâneas e do futuro, permeadas pelo imperativo da ética como base para reflexão. “Mapeei 100 perguntas baseadas em 100 temas e 100 dilemas que nós viveremos, enfrentaremos ou já estamos enfrentando, inspirados em obras ficcionais como Black Mirror, Minority Report, Matrix e Blade Runner”, diz. “Além de apontar para um futuro, muitas vezes apresentado como distópico, elenquei temas do cotidiano como cultura, comportamento e relacionamento, sempre permeados por questões e dilemas éticos”.

A ética também esteve presente nas palavras da influenciadora digital, maquiadora e ativista pelos direitos dos PcDs, Maili Santos. Ela fez duras críticas às empresas que ainda insistem em tratar a acessibilidade como “perfumaria”, sem se atentar para o número de brasileiros com restrições físicas e psicológicas. Trata-se de um contingente estimado em cerca de 19 milhões pelo IBGE, o equivalente à soma das populações do Uruguai e do Paraguai, que ainda lutam para ter direitos mínimos respeitados. Especialmente no caso dos eventos. “Quando uma estrutura é pensada, já na fase de planejamento, para contemplar a acessibilidade, os custos são sempre menores que quando é necessário fazer alterações”, diz. Para ela, existe muito discurso e pouca prática no que se refere à atuação privada e estatal quando o assunto é a acessibilidade. “Muitas empresas buscam apenas a obtenção do selo, sem cumprir as regras e os processos que viabilizem, de  fato, a vida de pessoas com eu”.

Ao longo do bate papo, Maili lembrou de sua trajetória pessoal e profissional permeada por dificuldades. Desenganada pelos médicos na infância, o prognóstico era que não passaria dos 14 anos de vida. Hoje, aos 41 anos, ela atua como palestrante em empresas cocriando trilhas anticapacitistas, além de ter assumido a presidência da Parada do Orgulho PcD de Salvador. “Sempre falo que olhem para a pessoa e a profissional e não para a cadeira de rodas que faz parte da minha vida!” Assim como Maili constrói sua história e sua trajetória exigindo o respeito aos preceitos gravados na Constituição, o jornalista, ator, escritor e pensador futurista Marcello Souza se apoia no registro escrito para tecer um futuro melhor. Marcello dividiu com a atenta plateia insights sobre a importância de os escritores assumirem uma postura cada vez mais empreendedora, como forma de rentabilizar seus trabalhos.

Em um mundo cada vez mais marcado pelo “copia e cola” do ChatGPT, ele defendeu a originalidade dos textos e a pesquisa como pontos de diferenciação para aqueles que desejam viver da escrita. “Em um momento de pasteurização, o que vai destacar seu trabalho é a originalidade”, diz. Também se mostrou bastante crítico ao “vale tudo e a terra de ninguém” em que se transformou o mundo das redes sociais. Para o coautor da coletânea Antologia Afrofuturista: Futuros Pretos Possíveis, a presença afro-brasileira nas redes precisa vir acompanhada da qualidade e da responsabilidade capazes de garantir um espaço de segurança para os influenciadores que compõem este recorte racial. “Precisamos criar espaços de segurança e redes de apoio. E quando formos monetizar um conteúdo (post escrito ou com imagem) isso precisa ser feito com responsabilidade”.

 

 "O Norte e o Nordeste vão liderar a próxima onda do desenvolvimento brasileiro"

 

Futuro é um vocábulo muito presente em sua trajetória empreendedora e intelectual, que se acentuou a partir da cocriação do Festival Afrofuturismo, realizado pela Vale do Dendê, da qual o senhor é um dos cofundadores. Qual o futuro que o senhor imagina para o Brasil e a sua população, especialmente a de seu recorte racial?

Eu imagino para o Brasil um futuro promissor, porque eu sou um otimista, mas também realista. Acredito que temos todo o potencial para ser um país líder em várias áreas e, obviamente, gerando prosperidade compartilhada e coletiva. Por exemplo, no segmento de bioeconomia, temos os principais biomas do mundo o que nos confere uma rica biodiversidade que pode ser base para uma infinidade de produtos e serviços, fazendo com que a Economia Verde seja a mola propulsora da nossa economia. Os chamados green jobs, são apontados como o futuro do trabalho, gerando novas fontes de renda a partir da digitalização da vida. E essa liderança passa pelas regiões Norte e Nordeste como bases para a economia do futuro em oposição à monocultura de soja que é a base econômica no Centro-Oeste.

Além da potência que pode nos trazer esse novo tipo de indústria focada na bioeconomia, o Brasil ainda pode tirar muitos dividendos da chamada Economia Criativa, pela qual já somos conhecidos e respeitados em termos globais. E não falo apenas do futebol, que é quase sinônimo de Brasil, mas, também, do carisma de nosso povo e sua forma de lidar com os problemas. São ingredientes que se transformam em um grande ativo no segmento de moda, cinema e na área da gastronomia, apenas para citar algumas. O terceiro elemento, certamente, é a própria tecnologia. Precisamos buscar a soberania tecnológica para não depender do Norte Global, por assim dizer. E, de fato, criar soluções que possam ser replicadas, inclusive no Sul Global, em países com desafios semelhantes ao nosso Como é o caso dos que compõem a América Latina e a África.

 paulo rogerio nunes livro vamos falar de futuro 1 papo reto

 

O senhor está lançando um livro em formato bastante diferenciado, batizado de livro-caixinha, composto de 100 cartões com perguntas. Como se deu a gênese desse projeto e o que o senhor espera conseguir como resposta, em termos comerciais e de reflexões dos leitores?

Esse projeto surgiu de uma provocação que eu fiz para a Editora Matrix, de lançarmos um livro sobre questões ligadas ao futuro, principalmente questões éticas.  Então, eu mapeei 100 perguntas baseadas em 100 temas e 100 dilemas que nós viveremos, enfrentaremos ou já estamos enfrentando, inspiradas em obras ficcionais como Black Mirror, Minority Report, MatrixBlade Runner e tantas outras que nos provocaram reflexões sobre o futuro. Além de apontar para um futuro, muitas vezes apresentado como distópico, elenquei temas do cotidiano como cultura, comportamento e relacionamento, sempre permeados por questões e dilemas éticos. Vamos falar de futuro que tem como objetivo fazer provocações. No meu primeiro livro, Oportunidades Invisíveis, eu entrevistei essas pessoas e queria ouvir delas sobre como elas criaram negócios. No segundo, Um Outro Futuro Ainda É Possível?, eu emiti opiniões acerca de vários assuntos, como cultura, tecnologia, comunicação. E, nessa terceira obra, eu simplesmente faço perguntas destinadas a levar os leitores à reflexão. Entre as 100 perguntas existem tópicos que cabem em mesa de bar, dentro Essas perguntas podem ser feitas em uma mesa de bar, em debates dentro de templos religiosos, em boardings de  grandes empresas e nos círculos familiares. A ideia central é realmente democratizar esses assuntos.

O tema diversidade e inclusão perpassam uma dezena de páginas do livro. Tratam-se de assuntos recorrentes em sua trajetória intelectual e profissional. Qual a importância destes dois temas na construção de um país mais justo e desenvolvido?

Então, a diversidade e a inclusão realmente estão muito presentes em minhas obras e na minha jornada, quer atuando como empreendedor e no papel de criador de pontes entre diversos grupos. Enxergo a diversidade e a inclusão como molas propulsoras da nova economia e não confinadas ao campo social. Desde sempre, eu olhei esses assuntos como um grande ativo, justamente porque na minha trajetória eu navego pelos dois mundos. No corporativo, a partir de meu trabalho em marketing e publicidade, que compõe minha formação acadêmica, e no social, a partir da minha própria origem como cria dos subúrbios de Salvador. Mais que um desafio, transitar nestes dois mundos e conectar seus atores só reafirmou minha certeza na diversidade e inclusão como valor estratégico. E é isso que procuro passar em minhas palestras.  

Na contracapa do livro é dito que o objetivo da obra é provocar reflexões em jornadas no mundo acadêmico, no ambiente profissional e até nos momentos de introspecção e reflexão. Qual o público-alvo prioritário desta obra?

O ponto de partida foi falar para um público mais amplo possível. Acredito que o livro poderá ser útil tanto para o jovem que está no ensino médio quanto para o universitário, cada um a seu modo refletindo e/ou tentando buscar respostas para os dilemas que os cercam. O que não invalida seu uso no ambiente corporativo, como já citei para você. O desenvolvimento e a popularização da robótica, da biotecnologia e os usos da Inteligência Artificial  trarão impactos para todas as pessoas, independentemente de sua condição financeira, status social ou posição no mercado de trabalho. Ao pensar na estruturação da obra tentei, ainda, fazer encontros de gerações, cujas experiências de vida e necessidades futuras também serão afetadas. Eu queria realmente que essa obra fosse eclética do ponto de vista conceitual e do ponto de vista, inclusive, prático, daí o formato no qual a obra foi impressa que possibilita o surgimento de insights novos ou complementares a cada `cartinha´ selecionada. 

O ano está se encerrando e muita pessoas já estão se programando para 2026. O senhor poderia nos adiantar em quais projetos estará envolvido no próximo ano, tanto individualmente quanto à frente da Vale do Dendê?

O ano de 2025 foi muito desafiador para os meus empreendimentos, por se tratar de um período no qual a pauta na qual eu trabalho sofreu impactos geopolíticos, que levaram os centros decisivos de muitas empresas a questionar o papel da diversidade como uma questão estratégica para o negócio. Diante deste novo cenário temos feito muitos esforços para que a pauta da diversidade não caia no esquecimento ou seja colocada como algo menor. Para dar conta desses novos desafios e avançar em 2026, estamos mexendo na governança da Vale do Dendê no ano em que completa 10 anos de seu lançamento, inicialmente como aceleradora e que, hoje, é percebida como um hub de inovação, criatividade e potencializador de talentos das periferias de Salvador.

NA esfera privada, meu objetivo é intensificar o desenvolvimento da AfroTV, buscando parceiros capazes de viabilizar a transformação do projeto em um canal de TV, continuar com a agenda de palestras e de consultorias para marcas e empresas dispostas a conhecer os diversos aspectos da diversidade e da inclusão, como também àquelas que desejem falar, e ouvir, sobre como acessar novos mercados de uma forma inovadora, a partir de insights de consumo. Ao longo de minha trajetória venho ampliando meu campo de pesquisa como forma de mostrar que devemos olhar, pensar e lidar com todos os atores que compõem o tecido social não como um ativo e não um passivo.

 

 

 

O jornalista de 1 Papo Reto viajou a Salvador a convite da Vale do Dendê