Michele Silva cresceu na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, um local que ostenta o título de a maior comunidade da América Latina. Comunicativa, ela acabou decidindo estudar jornalismo, na UniverCidade. “Sonhava em trabalhar na TV Globo”, recorda. Mas este projeto foi logo substituído por algo maior. Não em tamanho, certamente, mas no conteúdo. É que em vez de percorrer as redações de grandes jornais ou emissoras de TV, Michele acabou se unindo ao grupo de jovens como ela no jornal comunitário Fala Roça e no blog Viva Rocinha.
Em um país no qual a tiragem de jornais e revistas não para de cair, chega a ser um prodígio ver um órgão de imprensa alternativa atingir uma tiragem de cinco mil exemplares a cada bimestre. Mesmo sendo distribuído gratuitamente. “Nós caminhamos todos os sábados por ruas e becos de difícil acesso. E assim, de porta em porta, as pessoas conversam com a gente abertamente, pois elas se sentem prestigiadas por estar sendo visitadas e presenteadas com um jornal”, conta ela.
Michele deixa claro que a identificação com o público-alvo – “Sou filha de nordestina e acho que eles reconhecem isso só de olhar!” – ajuda na interlocução. E que isto acabou sendo também importante em sua decisão de apostar no jornalismo comunitário, baseado na realidade de seus pais e de muitos de seus amigos. O que poderia ser entendido à primeira vista como um desperdício de talento foi, na verdade, uma estratégia de carreira, mesmo que tenha sido tomada de maneira intuitiva. “Foi graças ao trabalho no jornal comunitário que cheguei à Califórnia”, conta.
Na terra de Tio Sam, esta brasileira de 26 anos com jeito de menina está ajudando a fazer história. E em escala global. Michele é assistente de campo e comunicação da Endeless e integra a trupe encarregada de fazer o lançamento mundial do computador que promete conectar a internet até mesmo as pessoas mais pobres.
De formato, digamos, engraçado, o minicomputador (tem dimensões reduzidas) custa US$ 169 (a partir da estrutura tributária dos Estados Unidos) e já vem de fábrica com cerca de 150 programas instalados, nas áreas de educação, entretenimento e empreendedorismo. Todos podem ser acessados no modo off-line. Para fazer a máquina rodar, basta plugá-la a um monitor ou uma TV convencional. Também é preciso dispor de um teclado, que não está incluso no pacote.
O grande desafio do Endless, porém, é ser bem-sucedido numa seara na qual muitos já fracassaram (veja abaixo a entrevista com o co-fundador e vice-presidente de expansão global da Endless, Marcelo Sampaio).
Mas a parte que cabe a Michele neste latifúndio, por assim dizer, é a mais divertida. Afinal, ela e seus colegas Camila Soares, diretora de Pesquisa de Campo da Endless, e Taylor Morgan, cinegrafista da Endless, embarcaram em um ônibus que saiu de São Francisco no dia 14 de maio e deverá entrar em Tijuana, cidade mexicana que faz fronteira com os EUA, no dia 20 de maio. O veículo vai funcionar como uma espécie de “cyber café sem internet”, uma vitrine itinerante do novo produto em seu primeiro mercado na América Latina.
Nada mau para quem está há apenas dois anos em uma empresa para a qual acabou sendo contratada a partir de sua atuação comunitária. “Eles chegaram ao meu blog através do Facebook”, conta. “Fui sondada para fazer um trabalho de três meses e já estou há mais de dois anos.”
Michele está consciente do papel que representa na estratégia da Endless. “Sou uma espécie de porta-voz dos nossos usuários, das pessoas da periferia, da favela”, define. “E isso é muito valorizado na empresa, pois cada coisa que fazemos aqui é pensada para esse público.” As ferramentas de comunicação ajudam a matar as saudades da família, para a qual a jovem é motivo de grande orgulho. “Eles se sentem representados por mim, aqui!”.
O que não a exime de ouvir as frases típicas de mães e pais preocupados com o bem-estar da prole: “Minha mãe sempre me pergunta se estou me alimentando direito e comendo comida de verdade, pois ela pensa que aqui só tem hambúrguer”, diverte-se. “Mas tem comida do mundo inteiro.” E é também neste mergulho gastronômico que Michele leva sua empolgação e sua militância comunitária em direção ao mundo.
Mais que uma expedição dedicada à promoção de um projeto de democratização do acesso à internet, a Endless é tocada como um negócio. Aliás, isso fica bem claro no material que apresenta a empresa. “Não somos uma ONG. Somos uma empresa que acredita que um computador pode mudar vidas. E que se ele for acessível, mais pessoas poderão comprá-lo”, afirma Matt Dalio, CEO e diretor de produto da Endless, em comunicado divulgado pela assessoria de imprensa da empresa.
Se levarmos em conta o sucesso da campanha de arrecadação de fundos na Kickstarter, pode-se dizer que o mercado concorda com o empreendedor. Em apenas quatro dias foi alcançada a meta de arrecadar US$ 100 mil para investir nas vendas do computador no México e na Guatemala.
Mas, e o Brasil? Bem, o maior e mais populoso país da América Latina é cobiçado pela equipe de Dalio. Tanto que as pesquisas envolvendo as funcionalidades da plataforma também foram feitas por aqui. A comercialização do Endless no país depende de uma equação que leva em conta a carga tributária. Hoje, a importação deste tipo de equipamento é taxada em cerca de 60%, se for trazida na bagagem de quem viaja ao exterior.
“Nada garante o sucesso do Endless”
O Nano, carro para os pobres da Índia não deu certo, pois foi rejeitado pelo público. O computador de US$ 100, do programa One Laptop for Children (OLPC), de Nicholas Negroponte, também não foi à frente. O que garante que a Endless será bem-sucedida?
Marcelo Sampaio – Em primeiro lugar, nada garante nada (risos). Mas creio que temos diferenças fundamentais. No caso do Nano, eles buscaram a solução mais barata possível, mas não ouviram o cliente. O cliente quer preço, mas também qualidade. O Nano gerou muito barulho antes de ficar pronto. E, quando chegou ao mercado, chegou atrasado e a um preço maior do que o prometido.
Já o programa OLPC tinha um modelo de negócio pouco sustentável, dependente de doações. E o foco em um público extremamente carente, que sofre com a falta de saneamento e de bens de consumo de primeira necessidade. Essa pessoa não tem condição de fazer manutenção caso surja algum problema com o computador e a vida útil acaba sendo ainda menor.
Nós somos uma empresa com fins lucrativos, ou seja, com um modelo de negócio sustentável, e buscamos a melhor experiência possível para o nosso usuário ao melhor preço possível. Esse é o nosso compromisso. Existem 7 bilhões de pessoas no mundo e só 2,6 bilhões possuem computadores. Queremos atingir uma parcela desses 4,4 bilhões. São pessoas que gostariam de ter computador, mas estão fora do mercado por uma questão de preço.
Qual será o modelo de negócios de venda no Brasil, por exemplo? Parceria com escolas privadas, prefeituras diretamente ou com o MEC? O conteúdo da Khan Academy foi incluído pensando em facilitar estas parcerias?
MS – Estamos neste momento traçando a estratégia para o Brasil, que passa por um enorme desafio de preço pela questão tributária. Devemos focar, inicialmente, em acordos com o governo para colocá-lo em escolas públicas pelo Brasil. Estamos empreendendo todos os esforços para trazer nossos produtos para o menor preço possível e temos a intenção de produzir nosso hardware localmente.
As vídeo-aulas da Khan Academy foram incluídas pela qualidade do conteúdo. Nosso produto se caracteriza por oferecer conteúdo educacional acessível off-line e nós teríamos incluído a Khan Academy independente de eventuais parcerias com governos.
Por que o mundo precisaria de um computador barato, quando os smartphones já cumprem de alguma maneira esta função?
MS – Pesquisas mostram que a maior parte das pessoas que tem condições de ter computador, compra um. O celular é usado principalmente para consumir conteúdo, enquanto a experiência de gerar conteúdo é totalmente diferente. Você não usa o seu smartphone para fazer uma pesquisa de escola, escrever um currículo ou fazer um trabalho acadêmico.