Ele foi lá e fez...

Uma das lembranças mais marcantes de minha infância está relacionada aos passeios com a minha mãe, entre Duque de Caxias, principal município da Baixada Fluminense, e Copacabana. No final da década de 1960, o bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro ainda estava na moda, apesar de Ipanema, com sua “garota a caminho do mar”, já ter ganhado um bom espaço no imaginário popular. Ipanema se fixou como um lugar bacana e mais tranquilo para morar, deixando para a vizinha a missão de ser um centro comercial, com vocação para ser polo irradiador de moda.

Numa das centenas de grifes e estúdios autorais, minha mãe dava seus primeiros passos como costureira e depois modelista. A dona da grife era a estilista autodidata Nair Mattos, mãe de Rose di Primo – a primeira top model brasileira.

De bobeira na oficina de costura, acabava sendo convocado para acompanhar Rose pelas ruas do bairro. Invariavelmente, essas caminhadas me rendiam um picolé e uns beijinhos na bochecha. Acabei gostando desse “metiê” e lá pelos meus 16 anos encarava dois ônibus e um trem para ir, sozinho, assistir os desfiles de moda em alguns dos Fashion Week da época.

Um deles, no entanto, me marcou de forma definitiva. Foi no finado Hotel Nacional, quando tive a oportunidade de ver em ação Aroldo Macedo, o primeiro modelo negro brasileiro. Se em pleno 2015 os negros ainda são uma raridade nas passarelas, imaginem na década de 1970!

Aroldo foi o primeiro a romper este muro que afastava das passarelas os homens, em geral, e os negros, em especial. Seu sucesso acabou abrindo caminho para muita gente. Inclusive Ubirajara, goleiro do Botafogo que abandonou o time da Estrela Solitária para ganhar a vida nas passarelas.

Em novembro de 2014, durante a Flink Sampa – Feira da Literatura, Conhecimento e Cultura Negra, realizada no Memorial da América Latina, em São Paulo, dei de cara com Aroldo. Passou um flashback em minha cabeça. E aí, vou lá tietar ou não vou? Pensei comigo mesmo.  Cheguei de mansinho, junto com minha filha, folheei uma das revistas da coleção Luana (leia mais abaixo), que ele estava mostrando no estande e disparei uma série de perguntas…

Mas a entrevista, propriamente dita, acabou rolando somente dois meses depois e acabou sendo feita por email. Isso porque fiz questão de aproveitar aquele momento para falar da minha admiração pela trajetória de um profissional que rompeu barreiras em todas áreas na qual atuou. Desde a universidade. Afinal, quantos negros estavam no curso superior na década de 1970 e ainda mais em uma área nobre como engenharia e, supremo pecado!, em uma universidade pública.

Depois de desfilar pelo mundo, literalmente, Aroldo desembarcou em São Paulo, onde fundou e dirigiu a Raça Brasil, que dispensa maiores apresentações. Antes, este carioca com pinta de galã de filmes americanos da época da “Blaxploitation“, trabalhou como ator de novela, teatro e de programas humorísticos, foi empresário etc.

A seguir os principais trechos da entrevista exclusiva a 1 Papo Reto:

Você desponta como modelo em meados dos anos 1970, quando o movimento Black Power começa a perder força e os negros começam a sair da TV (falo de Tornado, Erlon Chaves, Simonal). Como é que foi o processo de se tornar manequim (naquela época era este o nome, né!?) e ganhar o mundo nas passarelas?

Acho que nos anos 1970 o movimento black ganhava muita força no mundo inteiro: black power, panteras negras etc. Mas, o processo de me tornar manequim não tinha nada a ver com esse movimento, pois no Brasil não existia nenhum modelo negro. Eu estava me formando em Engenharia Civil pela Universidade Federal Fluminense (situada em Niterói, no Rio de Janeiro, e mais conhecida pela sigla UFF), quando recebi um convite para desfilar no Canecão. Não deu certo porque a equipe já estava completa, mas um dos manequins mais famosos do Brasil na época e que me fez o convite, Otto Aguiar, resolveu insistir para que eu me tornasse manequim. Me apresentou às pessoas, me chamava para fazer fotos etc. Um dia me apresentou a Iolande Hargraeves que era uma famosa coreógrafa de desfiles, e ela me contratou imediatamente para os trabalhos nos quais fazia de produção e coreografia. Comecei a viajar pelo Brasil fazendo muitos trabalhos e recebendo reconhecimento. O Otto casou com uma americana, morou anos nos Estados Unidos e se tornou pintor.

Existem momentos marcantes na trajetória de todas as pessoas. No caso dos artistas/modelos, eles acabam sendo ainda maiores. Você conseguiria me indicar três marcos da sua carreira/vida e por que eles foram tão representativos?

1) Quando resolvi ir pra SP e trabalhei com Luiz Tripolli, o maior fotógrafo e mais polêmico de moda na época, sendo o primeiro negro a fazer a revista Claudia Homem

2) Estava numa festa em SP, por volta de 1985, quando um negro se aproximou e disse que gravava e colecionava tudo que eu fazia, para mostrar para a filha dele, quando crescesse, que o negro não era só uma “piada” e que também fazia trabalhos relevantes e que davam orgulho para a raça

3) Quando recebi um convite do Paulo Araújo, diretor do programa de maior sucesso de 1976, o Planeta do Homens, da TV Globo, para fazer parte do elenco. O programa muitas vezes pontuava (no Ibope) mais que as novelas e o Jornal Nacional

Em meados da década de 1990, você, um carioca da gema, se muda para SP, aonde funda a revista Raça, um marco na imprensa brasileira. Como se deu essa guinada de modelo/ator para jornalista?

Eu montei um curso de modelos Maria Fumaça e após alguns anos, quando entrou o Collor (em março de 1990), eu senti que o barco ia virar no Brasil e me mudei para Nova York, cidade que eu já conhecia, pois tinha trabalhado lá, entre 1978 e 1980, como modelo na agência Elite do John Casablancas. Fiquei por lá sete anos e decidi tentar um patrocínio no Brasil para um documentário sobre capoeira. Quando visitei a Editora Símbolo conversei sobre o filme com a dona da editora Joana Woo, que tinha sido minha funcionária na Maria Fumaça. No meio do papo, surgiu: “Vamos fazer uma revista para os negros?” Ela topou de cara e logo depois eu estava de volta, definitivamente, criando a revista Raça Brasil.

Dizem que a sua saída da Raça teria sido traumática, tendo como estopim uma reportagem bastante polêmica sobre o relacionamento entre homens negros e mulheres brancas. Foi isso mesmo?

Não, não foi traumática de jeito nenhum. A saída foi hiper tranquila. Eu achava que já tinha dado a minha contribuição e queria fazer outras coisas. Reportagens sobre relacionamentos inter-raciais a gente fez algumas, nos cinco anos que fiquei lá e nunca tivemos nenhum problema. Eu tinha total autonomia para dirigir a revista e contava com total apoio da Joana.

Foi neste ponto que saiu de cena o jornalista e entrou o escritor? Como é que você começou a investir na literatura, inclusive a infantil, com Luana e sua turma?

Eu escrevia os editoriais da Raça e teve inclusive casos de pesquisadores de universidades que fizeram estudos aprofundados sobre os meus textos. Daí, foi um passo para me tornar escritor. Quando resolvi sair da revista, ouvi uma história contada por minha dentista sobre uma amiga negra cuja filha queria ter o cabelo como o da Xuxa. Isso foi em 1999. A mãe não sabendo como resolver, comprou uma peruca loira para a criança. Eu achei terrível e criei a Luana. De cara a editora FTD me encomendou um livro sobre os 500 anos do Brasil. Eu convidei o Oswaldo Faustino, que era meu colaborador e fazia reportagens quando eu dirigia a Raça, para escrevermos juntos, e surgiu Luana – A Menina que Viu o Brasil Neném. A partir daí, escrevi mais três livros ao longo desses 15 anos: Luana – Capoeira e Liberdade, Luana – Sementes de Zumbi e Luana – Asas da Liberdade.

Como se deu essa química entre você e o Faustino?

A química surgiu na revista Raça. A gente conversava muito e criava alguns projetos paralelos. A parceria é interessante, porque ele mora em São Paulo e, agora, eu moro no Rio, depois de ter passado uma temporada em Salvador, em 2010. A gente troca muitos emails e telefonemas durante o processo de criação da história. Em geral eu crio uma sinopse da história e a gente desenvolve juntos. Faustino é um grande parceiro, extremamente criativo. A gente já trabalha “de ouvido” (risos).

Fale-me um pouco sobre seus planos para 2015…

Pretendo continuar escrevendo os livros da Luana, fazendo oficinas de leitura e escrita para estudantes e capacitação para o ensino multicultural para os professores.