Na ocasião, ela e as amigas foram “bombardeadas” com perguntas um tanto quanto insólitas: por que vocês usam aparelhos nos dentes? Vocês escovam os dentes? Sabem mexer em smartphone e computadores? Aos poucos, o desconforto e a perplexidade iniciais foram se esvaindo. “Rimos muito e resolvemos acolher as perguntas com carinho”, conta. “Explicamos que temos história e identidade indígena, mas nem por isso deixamos de ser jovens conectadas com a modernidade do mundo que nos cerca”.
Não foi a primeira vez e, por certo, não será a última que Carina se verá diante de estranhamentos do “homem branco”. Muitos deles frutos de ideias pré-concebidas, baseadas em uma visão preconceituosa sobre o modo de vida dos povos originários. Para tentar quebrar algumas dessas barreiras, a jovem optou por intensificar o conhecimento de sua própria ancestralidade.
A primeira providência foi incluir em sua assinatura o nome de batismo do povo Desano, Horopakó, que significa mãe das flores, na língua tukano. Na sequência, mobilizou as jovens do município de Novo Airão, distante 143 km da capital e famoso por abrigar o Parque Nacional de Anavilhanas, o Parque Nacional do Jaú, a Resex Rio Unini e a Resex baixo Rio Branco Jauaperi. Lá, convivem diversas etnias, com destaque para Tukanos, Barés, Apurinãs, Arapasos, Baniwas e Desanos. Atuou, também, na articulação entre os mais velhos, como forma de resgatar registros culturais importantes nas artes e nas línguas. “A cultura indígena é marcada pela oralidade”, destaca. “Se não praticamos nossos costumes, eles acabam desaparecendo.”
De fato, o intenso, e por que não dizer cruel, processo de aculturamento vem causando muitos estragos. Tanto o de viés educacional, quanto o religioso. “Já fomos muito roubados em nossas riquezas e nossos costumes, especialmente pelos emissários de diversas religiões”, dispara. Como exemplo desse processo, Carina cita o caso da avó Laura Sanches, que passou a renegar o próprio passado depois que abraçou o catolicismo. Aliás, foi a matriarca a responsável pela migração da família da comunidade de Alto Rio Negro, na fronteira com a Venezuela e a Colômbia, para Novo Airão.
Após o falecimento de seu marido, ela entendeu que viver próximo à capital parecia uma aposta de uma vida melhor para os seis filhos, entre os quais estava Ercília de Souza, 48 anos, mãe de Carina. Porém, nem tudo saiu como planejado. “Minha mãe mal terminou o primário e foi trabalhar em Manaus como empregada doméstica e babá”, conta. “Quase sempre sem receber salário, apenas comida e roupas, pois, por ser indígena, não era reconhecida como uma pessoa que tivesse direitos”.
A virada aconteceu em meados da década de 2000, quando Ercília decidiu voltar a estudar e trocou os subempregos pelo empreendedorismo em artesanato. A iniciativa ganhou corpo com a criação da Associação dos Artesãos de Novo Airão (AANA), entidade da qual era associada e saiu, tempos depois, para atuar em carreira solo. Atualmente, a grife Ercilia Arte Desana é considerada uma potência emergente no segmento e reconhecida pela qualidade e carga cultural de suas peças. O ponto forte são os acessórios produzidos a partir de sementes, palhas e fibras coletadas, de forma sustentável, na Floresta Amazônica.
É nesse ponto que ganha corpo a trajetória de Carina no mundo do empreendedorismo e do ativismo identitário. Além de ajudar na gestão do negócio, a jovem também faz as vezes de modelo, posando para os posts publicados no Instagram da grife, o principal canal de venda, atualmente. Sua veia ativista ajudou a colocar o negócio no radar de aceleradoras focadas em empreendedorismo de base comunitária. Graças a essa mobilização, a Arte Desana foi selecionada no edital Itaú Mulher + Diver.SSA, no início deste ano.
A parceria mãe-filha também se deu na área educacional. Por influência da mãe, e com o objetivo de reduzir o impacto da narrativa branco-centrada na educação oferecida aos indígenas de Novo Airão, Carina se matriculou no curso de Magistério de Professores Indígenas, no âmbito do (SEDUC). Apesar de estar se encaminhando para a segunda etapa do projeto, ela já atuou como professora indígena na Escola Indígena Myry, comunidade Mirituba do povo Apurinã. “Nossos parentes estão perdendo muito de sua identidade com os professores brancos”, critica. “Eles chegam com uma bagagem muito rica, vinda da capital, mas, muitas vezes, não se dão conta de que a grande riqueza é o que já existe no local”.
Na tentativa de aproximar esses dois mundos, Carina apostou na transformação digital. Dessa forma, espera garantir uma troca de experiências e saberes entre indígenas e não indígenas em bases igualitárias. A principal alavanca para isso é a inclusão digital nas comunidades indígenas de Novo Airão, iniciativa tocada em parceria com o também docente Natan Araújo. O projeto foi financiado pela ONG NOSSAS, a partir do edital Periferia que Faz, e os centros de inclusão digital seguem a todo vapor nas comunidades indígenas de Mirituba e Renascer.
Nos últimos meses, Carina vem dividindo seu tempo em três frentes: ajuda a mãe na produção das peças de arte, mobiliza jovens indígenas e atua no mosaico interativo na Fundação Vitória Amazônica, que abraça a integração da comunidade no mundo digital. Além disso, conta sua história em lives. Foi em uma delas, o 1º Summit de Inclusão Digital – Vozes Inclusivas, que reúne especialistas, ativistas e educadores do Brasil e de Portugal, que eu conheci Carina.
Sua fala impressionou pela autenticidade e pela potência com que ela explana suas ideias. A partir de setembro, essa riqueza ganhará as páginas virtuais do portal de notícias 1 Papo Reto, para o qual essa inspiradora jovem vai escrever uma série de artigos. Afinal, para reduzir a distância entre esse grupo de brasileiros e os demais, é preciso ouvir e amplificar suas vozes.
Muito obrigado (ou Añû), querida Carina!