Ao longo de sua carreira como cineasta, a carioca radicada em São Paulo, Mara Mourão, foi se consolidando como uma das mais criativas de sua geração. Seu trabalho como produtora, roteirista e diretora rendeu prêmios em alguns dos principais festivais daqui e do exterior, além de bastante visibilidade. Prêmios são importantes. Reconhecimento, idem. Porém, nada lhe traz mais satisfação que a interlocução com expectadores que se dizem tocados de alguma forma por seus filmes. Tantos aqueles com uma pegada mais comercial, que abordam o cotidiano de homens e mulheres, quanto os considerados “cabeça”. “De forma inconsciente ou não, eu sempre busquei passar uma mensagem aos telespectadores”, diz. “E isso aconteceu logo no primeiro filme, Alô?!, uma neochanchada na qual faço uma crítica ao jeitinho brasileiro de tentar levar vantagem em todos os momentos”.
Mas, o que começou como uma postura crítica usando o humor como ponto de partida, em novembro de 1998, quando Alô?! estreou nas telonas, não demorou muito a se converter em uma espécie de sentimento de missão que atravessa a quase totalidade de sua filmografia composta de 16 obras, entre longas, documentários e séries. Seu mais novo “rebento” é Muito Além do Lucro, no qual a cineasta coloca no divã as corporações e o próprio capitalismo. “A grande pergunta que permeia o documentário é sobre o papel das empresas na mudança do mundo e na melhoria das condições de vida das pessoas e do planeta. Afinal, quem pode fazer a mudança, em escala global, é quem detém o poder do dinheiro”, destaca. “E como o capitalismo sempre soube se reinventar muito bem para continuar atuando com suas práticas predatórias, a gente tem de encontrar meios de dar mais visibilidade a estes esquemas e, a partir daí, exigir uma nova postura”.
Mesmo antes da estreia, marcada para 2 de outubro, em circuito nacional, Mara tem viajado o Brasil para difundir algumas das teses e dos aprendizados apresentados pelos 29 personagens ouvidos no doc. A lista inclui 26 brasileiros e três estrangeiros: o banqueiro Joan Melé, criador do Banca Ética, o consultor Raj Sisoda, cofundador do movimento Capitalismo Consciente, e Tshering Tobgay, primeiro-ministro do Butão no período 2013-2018, em cuja administração passou-se a privilegiar o índice de Felicidade Interna Bruta (FIB) para medir o desenvolvimento do país. O FIB é uma releitura do Produto Interno Bruto (PIB), usado largamente, mas que vem sendo alvo de críticas de economistas e ativistas com uma visão mais humanista do processo econômico.
Ela conta que quando começou a pensar no projeto, em 2017, o objetivo era repetir o modelo usado em Quem se Importa, considerado um marco mundial no debate sobre empreendedorismo de impacto social, ganhador de múltiplos prêmios em festivais e aclamado em centros acadêmicos pelo mundo afora, além de ter sido recomendado pela Unesco. Ao contrário do anterior, no qual ela amplifica a voz de 18 ativistas socioeconômicos baseados em oito países de todos os continentes, dessa vez o orçamento teve de ser enxugado por conta das limitações decorrentes dos impactos da COVID-19, que resultou em um cenário um pouco mais desafiador. Colaborou para isso a rápida prevalência do Tecnofeudalismo, teoria criada pelo economista Cédric Durand na qual ele critica a nova onda de concentração de poder econômico e social, liderada pelos donos das big techs.
Os percalços, a rigor, não afetaram a potência ou o peso da mensagem trazida por Muito Além do Lucro, tampouco a disposição da cineasta em transformar esse debate na centelha de um call to action. “Historicamente, as grandes mudanças sociais têm sido feitas a partir de revoluções sangrentas. Mas não precisa ser assim, pois existe modos de obter o mesmo resultado se conseguirmos tornar obsoleto o capitalismo predatório, abandonando práticas que só beneficiam uma parcela e que são ruins para o conjunto da sociedade”, diz. Segundo ela, uma das mensagens do filme é que é possível unir ética, responsabilidade social e lucratividade. E é neste ponto que cresce a importância da curadoria dos personagens do doc, compostos por empreendedores de inúmeros setores que aderiram às práticas do capitalismo consciente e cujos negócios seguem crescendo. “As empresas são compostas de CPFs e muitos empreendedores já estão levando para suas empresas os novos parâmetros exigidos pela sociedade e o planeta, atuando de forma propositiva em vez de apenas reagir às obrigações legais”.
MOVIMENTO
Bem, como sabemos, sonhar é de graça, mas será que é possível acreditar em mudanças estruturais em um mundo tão polarizado e conflagrado como há muito não se vê? A cineasta diz que sim. E trata de afastar o rótulo de naive, argumentando que esta é uma tendência global que começou a ganhar corpo por meio de arranjos liderados pela Organização das Nações Unidas (ONU), a partir da criação dos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), a implantação da cultura de valorização ESG (acrônimo para meio ambiente, social e governança, da sigla em inglês) por parte das empresas e de uma maior pressão de investidores institucionais em relação às práticas adotadas pelas corporações nas quais investem seus recursos. “Meu otimismo em dias melhores não é fruto de um delírio sem base na realidade”, destaca. “Minha opção por privilegiar a visão de quem enxerga o `copo meio cheio´ parte da constatação de que existem recursos para resolver alguns dos principais dilemas da humanidade, além do fato de contarmos com muitas pessoas fazendo a diferença em diversos campos”.
E é partir do pressuposto de “Liderar pelo exemplo” que a diretora e roteirista de Muito Além do Lucro pretende transformar as teses defendidas no doc em um movimento, exatamente como aconteceu no lançamento de Quem se Importa. “Naquela época eu não tinha pernas para tocar este projeto e, mesmo assim, a plataforma do filme ganhou cerca de 70 mil seguidores no Facebook e contou com mais de 200 mil views no Youtube”. Agora, com as redes sociais ainda mais inseridas no dia a dia dos brasileiros, além do grande destaque das agendas econômicas, ambientais e sociais, ela espera conseguir fechar parcerias para colocar os conceitos, aprendizados e angústias trazidas por Muito Além do Lucro no centro do debate nacional. E o grande “laboratório” dessa iniciativa serão os eventos pré COP que estão acontecendo em Belém, reunindo agentes governamentais, empresários e ativistas de diversas partes do Brasil. “Eu não condeno o lucro. Mas sim a premissa de que ele deve estar acima de tudo”.
