Será que vale mesmo a pena trabalhar (quase) de graça?

Será que vale mesmo a pena trabalhar (quase) de graça?

Venho percebendo uma coisa muito contraditória em minhas conversas com jornalistas, um dilema que parece não ter solução. Os profissionais mais sênior me dizem para eu “não me vender” barato e respeitar os meus horários. Aconselham-me a não aceitar trabalho em troca de experiência, tampouco encarar jornadas além do estipulado sem que eu seja remunerada por isso. Mas no dia a dia da profissão a realidade parece ser outra.

Com os jornais diminuindo suas equipes e mantendo o modelo remoto da pandemia, é cada vez mais comum que redações tenham um time menor e complementem a demanda com freelancers. Só neste ano, pelo menos 23 empresas de conteúdo jornalístico anunciaram demissões, de acordo com a revista Forbes. Em recentes cafés de networking, já ouvi relatos sobre pelo menos outras duas empresas que também cortaram uma parte de suas equipes. De acordo com estudo do Departamento de Dados Relacionados ao Trabalho do governo americano, o número de vagas de empregos para analistas de notícias, repórteres e jornalistas está previsto para diminuir em 9%, no período 2021-2031 nos Estados Unidos.

Infelizmente, é muito difícil viver do que se ganha como freelancer com a produção de apenas algumas reportagens ao mês. Ser jornalista freelancer significa não ter seguro saúde pago pela empresa, não ter férias remuneradas e não ter uma renda estável. Muitas pessoas acabam tendo um segundo emprego em outra área ou em uma área parecida que ajude a pagar as contas, o que resulta em cargas horárias intensas.

Ao arbitrar um valor, muitos editores pensam somente na reportagem que será entregue. Mas, por trás de cada matéria tem um processo enorme que envolve a correria para fazer contatos, ouvir histórias, se apresentar para editores e entender qual seria um ângulo interessante para cada publicação. Além disso, muitos editores preferem pautas que não fiquem “velhas” rapidamente, para que possam dar prioridade às suas equipes e encaixar histórias de freelancer nos espaços abertos. Ou seja, entregar uma reportagem no primeiro dia de um mês, pode significar um pagamento somente lá pelo dia 25, depois que a história foi publicada.

Para ter um mínimo de estabilidade, ganhar experiência de qualidade e construir meu portfólio, faço plantões de notícias num jornal americano. Procuro me engajar no máximo de plantões, já que conheço a equipe e sei que serei paga por cada hora de trabalho. Já encarei nove dias seguidos num total de mais de 80 horas trabalhadas para poder compensar a falta de garantia de pagamento “justo” nos outros dias do mês.

Aí é que entra o dilema: cobrar ou não cobrar pelo trabalho pré-reportagem? Como encontrar o equilíbrio entre pagar as contas, ter uma vida pessoal e satisfazer editores com um bom serviço e um valor “aceitável”? Esse é um assunto quente entre freelancers americanos. Estou em dois grupos de e-mail para rádio e uma das mensagens mais comuns é: “quanto vocês acham que eu deveria cobrar pelo trabalho X?”. Muitas pessoas têm medo de cobrar demais e perder o contrato, mas cobrar de menos significa não ser remunerado de forma justa por cada hora de trabalho.

requiem for the newsroom isabela rocha 1 papo retoReprodução da página do The New York TimesMuitos optam pela garantia do pouco ao invés do risco do nada e acabam se vendendo barato. Como diz uma produtora independente que conheço, “Precisamos parar de competir para ver quem chega mais rápido no fundo do poço”. Depois de três anos de trabalho, ela começou a cobrar mais pelos seus projetos, mas ainda se sente culpada na hora de falar sobre remuneração.

Desde a pandemia, o trabalho on-line também dificultou a troca entre jornalistas, que tanto contribui para o sucesso das reportagens e para a empatia e colaboração entre as pessoas. Nos poucos dias que consigo ir para a redação, sinto a diferença de estar no ambiente, interagir com os editores, ouvir a conversa nos corredores, me apresentar para pessoas que admiro e ver a dinâmica de uma redação. Como disse o escritor da revista The Atlantic Mark Leibovich à colunista do The New York Times, Maureen Dowd, “Não consigo pensar em uma profissão que depende mais de osmose e estar rodeado de pessoas do que o jornalismo.” (aqui, em inglês e apenas para assinantes).

Recentemente, a AIR (em português, Associação de Independentes no Rádio) começou a fazer reuniões com empresas privadas sobre valores mais justos para os freelancers. A associação já tinha guias e até uma calculadora para ajudar os jornalistas a pagarem suas contas, mas uma líder da associação, que conheci em um evento de networking, disse acreditar que as grandes empresas precisam ser incluídas nas conversas para entenderem melhor o lado dos freelancers. Ela usou uma metáfora muito boa: hoje em dia, as empresas ficam balançando sacos de dinheiro na frente dos freelancers, que por sua vez são obrigados a adivinhar quanto tem dentro.

Espero que as conversas com executivos façam a diferença, mas sei que no fim do dia, as empresas ainda querem economizar o máximo possível para gerar lucro. Enquanto isso, nós freelancers ficamos à mercê da coragem, da flexibilidade para negociação e do poder da adivinhação, cochichando com colegas em grupos de e-mail.

E quem perde nessa história toda é o jornalismo, que vai ficando cada vez menos atraente para profissionais com formação acadêmica sólida, que deixam de colocar sua força de trabalho em prol da elaboração de reportagens incríveis, pois têm de buscar a estabilidade financeira atuando em outra área ou por outros meios. No final, a sociedade inteira fica mais pobre. 

 

Isabela Rocha

Autor: Isabela Rocha

Sobre o/a Autor(a) Isabela Rocha é jornalista freelancer. Apaixonada por escrita, comunicação e justiça social, seu sonho profissional é trabalhar para o avanço da igualdade de gênero e do combate ao racismo. Ela acredita no poder democrático das notícias e sempre busca contar histórias relacionadas à diversidade para normalizar a vida de minorias sociais.


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