O melhor de dois mundos

Pode-se dizer que a vida de Ricardo Henrique Rocha, de 21 anos, se divide em duas partes. Na primeira, ele segue cumprindo o papel de segundo dos quatro filhos de dona Silvana Rocha. Quando a irmã mais velha Sarah, 25 anos, ingressou no mercado de trabalho coube a Ricardo tomar conta dos mais jovens Ives, 14 anos, e Sabrina, 11 anos. Muitas vezes, o futebol com os amigos nos campinhos de terra na periferia de Osasco era substituído por tarefas domésticas, como a arrumação da casa ou o preparo do almoço dos irmãos.

A mãe sempre trabalhou como empregada doméstica e, nos tempos mais difíceis, mantinha uma jornada de domingo a domingo para manter os filhos arrumados, a despensa cheia e o aluguel da casa, de apenas um cômodo, sempre em dia. Apesar de reconhecer na mãe o seu grande farol, a ausência do pai, Sidney do Amparo Rocha, de quem Silvana se separou há 10 anos por conta de episódios de violência, é sentida até hoje pelo jovem. Todos esses fatos ajudaram não apenas a moldar o caráter de Ricardo, como também a fazer dele um vencedor. A começar pelo instante de seu nascimento, em um parto feito em casa. O cordão umbilical enrolado no pescoço fez com que o procedimento fosse mais complicado e arriscado que o normal. "Todo mundo disse que eu iria dar trabalho", lembra.

Ricardo, no Projeto Rondon Ricardo, no Projeto Rondon De fato. Mas o menino irrequieto na infância, quase o terror das professoras, sempre gostou de estudar. "Minha mãe não teve essa oportunidade e por isso fez questão que os filhos estudassem muito." As adversidades foram vencidas com um largo sorriso no rosto e a disposição de aprender coisas novas. A curiosidade por um novo mundo acabou levando-o, em 2011, à Faculdade Zumbi dos Palmares, instituição de ensino em São Paulo que se distingue pelo caráter filantropo - as mensalidades são subsidiadas - e pelo fato de ser administrada por integrantes da comunidade negra. É neste ponto que surge a outra parte da vida e da trajetória de Ricardo, morador da Cohab de Carapicuíba e que vem se impondo como exemplo de um dos mais bem-sucedidos programas de ações afirmativas adotadas por empresas privadas no Brasil.

Ricardo traz no currículo uma passagem de dois anos como trainee do Citibank e desde fevereiro dá expediente na filial do banco de investimentos Goldman Sachs, em São Paulo. Prestes a concluir o curso de Administração, Ricardo já faz planos de chegar a Nova York, onde fica sede do banco. "Se tudo der certo, será minha primeira viagem ao exterior", conta. "Até então, só tinha saído de São Paulo para ir ao Piauí, onde participei do Projeto Rondon, com os colegas da faculdade." Essa viagem, aliás, acabou pesando favoravelmente em sua contratação no banco. É que, enquanto disputava uma vaga de trainee, o jovem se dividia nos preparativos para passar na seleção do Projeto Rondon. 

No final, após quase quatro meses de disputa com colegas de diversas parte dos mundo foi aprovado no Goldman Sachs. No ato, pediu para atrasar em um mês seu início para poder viajar ao Piauí. "O que poderia colocar tudo a perder se tornou um trunfo, pois o banco valoriza muito quem faz trabalho comunitário." No trajeto entre a periferia e rica região da avenida Faria Lima, que abriga a sede de empresas globais listadas entre as 500 maiores do planeta, Ricardo reflete sobre a diferença entre os dois mundos e tenta encontrar maneiras de reduzir a distância (não a física) entre eles. Reflexões que viram poemas, letras de rap, de samba... que ainda não teve coragem de mostrar a ninguém.

Ricardo também reserva uma parte do trajeto para se atualizar na leitura de livros e manuais sobre o mundo financeiro. Com os novos amigos, de todos os escalões do Goldman Sachs, ele aprende também sobre culinária. Dia desses fez uma incursão a uma temakeria, onde até então jamais havia pisado. "Os programas de cotas têm um papel importante na costura entre estes dois mundos", avalia. A faculdade, também. E foi por isso que a irmã Sarah voltou a estudar e também cursa Administração na Zumbi dos Palmares. Destino semelhante deverá ser seguido por Sabrina e Ives.

O fundador de 1 Papo Reto conheceu Ricardo em meados de março, durante cerimônia na Faculdade Zumbi dos Palmares de entrega de Medalhas do Mérito Cívico Afrobrasileiro. Ele foi um dos agraciados e sua alegria com a honraria está estampada na foto que abre esta reportagem. O jeito simples de falar de sua trajetória, suas vitórias e angústias revelaram um ser humano capaz de inspirar muitas pessoas. Desde então trocamos e-mails e telefonemas que resultaram em uma longa entrevista, cujos principais trechos estão a seguir: 

"MEU SUCESSO PODE FAZER COM QUE MAIS JOVENS DA PERIFERIA CONSIGAM INGRESSAR EM EMPRESAS DE ALTO NÍVEL"

Como você chegou ao Goldman Sachs?

O estágio foi possível graças à parceria do banco com a Faculdade Zumbi dos Palmares, onde estudo Administração. O processo seletivo foi duro e incluiu a análise de 200 currículos, depois a disputa direta com 45 candidatos. Foram quatro meses, no final de 2013 e o resultado saiu apenas no final de dezembro.

E como tem sido essa experiência para você, um menino criado na periferia de Osasco, na região metropolitana de São Paulo?

Em família: Ricardo com a irmãs Sarah (à esq.) e Sabrina e a mãe, SilvanaEm família: Ricardo com a irmãs Sarah (à esq.) e Sabrina e a mãe, Silvana Foi um choque em todos os sentidos. Estou em um ambiente totalmente diferente do que fui criado. Mas tem sido muito bom, pois atuo em uma área estratégica do banco, que é o setor de Finance, no qual analisamos a estruturação de negócios e a contabilidade do banco em nível global. As dúvidas que surgem são sanadas pelos colegas que, apesar da agitação cotidiana, sempre arranjam tempo para me ajudar.

Ter de se comunicar em inglês tem sido difícil para você?

No começo foi muito difícil, apesar de eu ter facilidade com o idioma e também tive passagem por outro banco americano, o Citibank, onde permaneci por dois anos. Mas a velocidade com que as pessoas falam me assustava no início. No Goldman Sachs nós falamos em inglês o tempo inteiro. Até mesmo em meu grupo de trabalho que inclui outros brasileiros.

Devo imaginar que você é um dos poucos negros nesta empresa. Você se sente à vontade neste ambiente?

No início o maior estranhamento foi dos colegas. Isso porque eu já sabia que iria encontrar um local no qual seria o único ou um dos poucos negros. Essa imagem já era clara em minha cabeça. Apesar da pouca idade, estou há bastante tempo no mercado de trabalho e sei como as coisas funcionam. Além da cor, o que me diferencia dos demais é a trajetória de vida. O padrão esperado neste tipo de empresa é de pessoas com o mesmo perfil escolar e com trajetória de vida semelhante. Sou um dos poucos da equipe que nunca moraram fora do país ou viajaram para o exterior. Mas nem a cor da pele, nem minha história de vida tem representado uma barreira para o relacionamento com os colegas ou para o meu desempenho profissional. Aliás, o nível de curiosidade sobre os dois mundos é recíproco.

Como assim?

Quando estamos em momentos de descontração, na hora do cafezinho ou do almoço, sempre conversamos coisas pessoais. No início, o pessoal não conseguia disfarçar o estranhamento quando contava que havia passado o final de semana fazendo atividades como a participação em um Coletivo de Grafiteiros. Por falta de conhecimento, muitos ainda confundem a arte do grafite com a pichação. Outro dia, falando sobre gastronomia, confessei que nunca havia comido sushi. O pessoal me olhou de um jeito que pensei que era um ET. Aí, uma de minhas tutoras disse que iríamos almoçar em uma temakeria para que eu conhecesse os pratos. Foi divertido, apesar de eu ter perdido de 10 a zero para os hashis. Gostei tanto que, quando cheguei em casa, contei a experiência para minha mãe e já marquei uma data para ela e meus irmãos irmos comer sushi.

Como é a sua rotina diária?

Acordo um pouco antes das sete da manhã. Tomo café e caminho até a estação de trem, ou pego um ônibus até lá, onde chego às 7h30. No caminho, já começo a refletir sobre as diferenças entre os dois mundos. Como tenho de me vestir no estilo social, as pessoas de meu bairro já me olham com certo estranhamento. Outro dia, uma conhecida me encontrou no ônibus e disse: 'Puxa, você elegante deste jeito deve trabalhar lá pelos lados e São Paulo, né!' Essa frase me marcou muito, pois me mostrou de forma clara e objetiva a diferença entre estes dois mundos. A avenida Paulista e a Faria Lima, considerados centros do poder, são vistos por determinadas pessoas como um ambiente inatingível.

Como é transitar por estes dois mundos? Na minha jornada de cerca de uma hora até o trabalho existem inúmeros fatos marcantes. Primeiro é a diferença entre as pessoas que circulam no transporte público. Desde a forma de se vestir, até seus hábitos durante a viagem. No ônibus, vejo pessoas com botina de biqueira de aço, calça jeans etc. No trem até o bairro da Vila Olímpia, onde trabalho, as pessoas usam roupa social, leem livros e jornais em espanhol e em inglês. A paisagem da janela também é bastante diferente. As casas humildes, terrenos baldios e fábricas abandonadas vão dando  lugar a torres de escritório com visual futurista e edifícios luxuosos, enfim, um outro mundo. É por isso que digo que minha entrada em um banco do prestígio como o Goldman Sachs pode funcionar como uma porta para que outros jovens tenham a mesma oportunidade. Dou duro para mostrar o meu valor e para ser reconhecido pela qualidade do meu trabalho. Sei que tenho uma grande responsabilidade não só com a comunidade negra, como também com os colegas da Zumbi dos Palmares. Se for bem-sucedido, certamente isso abrirá as portas para que a parceria entre o banco e a faculdade aumente ainda mais, possibilitando que mais jovens possam viver esta experiência. Por outro lado, minha presença no banco também funciona como um elemento que aumenta o grau de conhecimento da instituição junto a um número maior de pessoas, aproximando ainda mais estes dois mundos.

E qual seria a forma de unir estes dois mundos, ampliando o acesso dos jovens da periferia às empresas de ponta? 

Ricardo 4 grafite 1 150x150Grafites no bairroAcredito que uma das formas de fazermos isso é pela política de cotas, mesmo. Eu fico revoltado quando pessoas instruídas vêm me dizer que as cotas não são necessárias, porque as oportunidades existem para todos. Muitos falam até em racismo às avessas. Não é bem assim. No Brasil, existem problemas estruturais que impedem, na prática, o acesso de um número maior de pessoas às melhores escolas, à melhor condição de vida e isso não está ligado apenas ao esforço pessoal. E isso é mais evidente no caso dos jovens negros. Mesmo atuando em uma empresa que valoriza a diversidade, como é o caso do banco Goldman Sachs, onde temos colegas vindos do Japão, da China e dos Estados Unidos, quando encontro meus colegas africanos, por exemplo, é sempre uma festa. Nos cumprimentamos de forma efusiva, até no elevador. Não adianta, temos um jeito diferente de ser e é bom estar em um ambiente de trabalho que valoriza a diversidade.

Você acredita que a cor da sua pele tenha pesado positivamente para você conquistar este posto?

Sendo muito sincero, este aspecto rondou minha cabeça durante todo o longo processo de seleção. Foram quatro meses de dinâmicas, entrevistas e provas, tudo em inglês. Foi desgastante. E se consegui avançar em cada uma das etapas, estava claro que tinha qualificações para o cargo. Mas mesmo assim, só tirei isso da minha cabeça quando, na última entrevista, o integrante do departamento de Recursos Humanos disse de forma clara e objetiva que eu tinha vencido apenas por meus méritos pessoais.