Há cerca de duas semanas, nós publicamos um post no LinkedIn (reproduzido abaixo) no qual demonstrávamos nosso misto de espanto, tristeza e indignação em relação ao pouco caso das grandes marcas à pauta da Diversidade, Inclusão e Equidade (DE&I). Só que dessa vez, não se tratava de mais um post, mas sim de um libelo construído a partir da notícia do adiamento da Feira Preta 2025, por conta da não adesão de marcas ao evento. Felizmente, não estávamos sozinhos nessa trincheira da cobrança para que valores basilares deixem de ser encarados como "meras modinhas".
Percorrendo as redes, descobrimos que a plataforma Mapa dos Festivais havia feito uma entrevista com Adriana Barbosa, fundadora da Feira Preta, e com Mauricio Sacramento, idealizador do Batekoo Festival.
Com a devida autorização da jornalista Nathalia Pádua, apresentamos a íntegra da dupla entrevista logo após a replicação da nota originalmente escrita para a nossa página no LinkedIn. Essa não deveria ser uma luta isolada de afro-empreendedores, tampouco de veículos da mídia independente. Afinal, em um país que tem na Economia Criativa um de seus sustentáculos na geração de renda e emprego, o fomento aos festivais, em geral, e à Feira Preta, em particular, deveriam ser um item de disputa entre os gestores de marca que se dizem comprometidas com marcos civilizatórios. Mas, como sabemos, nem sempre o discuso consegue ir além do papel!
Feira Preta: os festivais de cultura preta estão sofrendo mais com a disputa por patrocínios no Brasil?
Conversamos com Adriana Barbosa, da Feira Preta, e Mauricio Sacramento, do Batekoo Festival, para entender qual o impacto da retirada de patrocínios nos festivais de cultura preta brasileiros.
É uma realidade: desde o pós-pandemia, temos vivido um boom no número de festivais no Brasil. Segundo dados do Mapa dos Festivais, em 2024 foram realizados 364 festivais no Brasil, um crescimento de mais de 20% em relação ao ano anterior. Em 2023, nós, inclusive, levantamos uma pauta questionando se essa quantidade de eventos iria conseguir se sustentar a longo prazo.
Diante desse crescimento exponencial de eventos seria quase que inevitável que os desafios no mercado de festivais começassem a surgir e, em 2024, começamos a ver uma onda de cancelamentos e adiamentos de eventos devido a fatores diversos: desde a crise climática até a falta e a má distribuição de patrocínio. Para se ter uma ideia, no ano passado, 29 festivais foram cancelados e 9 adiados no Brasil.
Esse cenário também nos fez questionar o contrário: o que os festivais que tiveram êxito com o público e sold out no ano passado fizeram de diferente para driblar as dificuldades do mercado? Foi aí que organizamos a mesa “Desafiando os cancelamentos: festivais que realizaram edições memoráveis em 2024” na Sim São Paulo, em fevereiro, em que reunimos representantes da Feira Preta (SP), Psica (PA), Festival Carambola (AL) e Coquetel Molotov (PE) para contar os segredos das suas edições exitosas de 2024.
Para a nossa surpresa, no final do painel, ficamos sabendo que a Feira Preta, que aconteceria no Parque Ibirapuera em maio de 2025, seria adiada para 2026 por falta de verba. O festival conseguiu captar apenas 40% do previsto para a edição paulista e passará a ser bianual. No entanto, confirmou uma edição no segundo semestre em Salvador, local onde encontrou apoio.
“A gente captou, mas não captou o suficiente, então a gente quer ser justo ao que a gente construiu. Honrar os pagamentos dos artistas, fornecedores, toda cadeia produtiva. A gente olha o Feira Preta como um lugar de circulação monetária, prosperidade. E sustentar essa missão de prosperidade sem dinheiro em conta, fica incoerente, entendeu?”, contou Adriana Barbosa, fundadora da Feira Preta, ao Mapa dos Festivais.
É contraditório que o festival esteja passando por esse momento em São Paulo, já que no ano passado fez a sua maior edição em 23 anos de história. O maior festival de cultura e empreendedorismo negro da América Latina movimentou cerca de R$14 milhões, beneficiando diretamente 170 emprendedores negros e gerando aproximadamente 600 empregos temporários.
Foram 60 mil pessoas durante os três dias de evento, contabilizando o maior público do festival até aqui. O que nos leva a se perguntar: o que faltou para os patrocinadores quererem entrar com verba suficiente no festival em 2025?
Não existe festival em 2025 sem patrocínio
Para começar a entender essa equação, precisamos compreender que não é viável economicamente fazer um festival sem patrocínio no pós pandemia, já que o custo de staff, artístico, passagens aéreas e infraestrutura de festivais dobrou. Dentre os eventos que sofreram com a má distribuição de patrocínios e diminuição de verba e não conseguiram sair do papel recentemente está também o Batekoo Festival, que foi adiado em novembro de 2024 pelo mesmo motivo da Feira Preta.
“Hoje nenhum festival no mundo, sobretudo no Brasil, consegue existir sem patrocínio de marcas privadas ou de editais públicos. Não existe mais essa possibilidade. A conta não fecha só com dinheiro de entrada, com dinheiro de bar, ninguém consegue fazer um festival hoje em dia sem patrocínio”, explicou o CEO e diretor criativo da Batekoo, Maurício Sacramento.
Além de ser de essencial importância angariar patrocínios para realizar um festival, diante de tantas opções de eventos, a concorrência está ficando cada vez mais acirrada. Existem muitas marcas interessadas em patrocinar festivais de música, mas dentro da música, cada uma tem suas prioridades e o que busca ao patrocinar um festival, o que torna o mercado ainda mais competitivo.
Diminuição de patrocínio para projetos ligados a diversidade
Embora a crise seja geral no setor da cultura, não há como falar sobre o cenário brasileiro de festivais sem recortes raciais. Tanto o Festival Batekoo, como a Feira Preta são festivais que colocam a cultura preta como protagonista e sofreram com a diminuição de patrocínios no último ano.
Batekoo Festival 2023. Foto: I Hate Flash
“É importante destacar que a Batekoo é um projeto preto, uma plataforma preta que tá dialogando de preto para preto. A gente chega para fazer uma reunião e são três jovens pretos que estão ali apresentando um projeto para uma marca que às vezes não tem nenhuma pessoa preta contratada”, comentou Maurício Sacramento.
Segundo Adriana Barbosa, além da dificuldade das marcas quererem patrocinar projetos ligados à cultura preta, também está existindo uma diminuição da verba para projetos de diversidade como um todo. “Vocês devem ter percebido, devem ter visto, lido, assistido por aí o quanto esse tema de diversidade perde força no Brasil. O que acontece nos EUA reflete muito no mercado aqui, como as empresas se portam em relação à diversidade e a nossa captação diminuiu”, argumentou.
Um artigo publicado em abril do ano passado por Paulo Rogério Nunes no Meio & Mensagem corrobora com a visão de Adriana Barbosa. Segundo o texto escrito pelo consultor de Diversidade e Inovação, houve um progresso entre 2020 e 2022 no investimento em políticas de diversidade devido a pautas que estavam emergentes na época como a morte de George Floyd, nos EUA, e o crescimento do movimento Black Lives Matter, porém essa “lua de mel” está chegando ao fim.
“O acompanhamento dos relatórios das corporações e o volume de investimentos em projetos podem indicar que o tema da diversidade, em especial a racial, não parece ser mais uma prioridade das grandes e médias empresas brasileiras”, afirmou Rogério Nunes no artigo.
A mesma impressão também é compartilhada por Maurício Sacramento, do Batekoo Festival. “A gente falou com mais de 100 marcas. Não é um fato isolado, não é um uma coincidência, não é uma coisa que começou a acontecer agora. Eu acho que o movimento organizado que vem acontecendo mesmo da branquitude de parar e deixar de olhar para esse lado da diversidade, de não ser mais uma prioridade.”
Para Adriana Barbosa, isso também acontece porque “muitas vezes, o compromisso das marcas com a diversidade e a cultura negra é, digamos, sazonal. Não posso generalizar, mas é também verdade que boa parte da adesão acontece quando há um grande apelo midiático ou social, mas se desfaz quando a urgência do tema deixa de estar em evidência.”
Além disso, as mudanças internas nas empresas – novas lideranças, revisões orçamentárias e redefinição de prioridades – podem resultar no corte de iniciativas que não são vistas como essenciais. “Em vez de entenderem o apoio à diversidade como um pilar contínuo e necessário, tratam os festivais como campanhas isoladas, sem planejamento de longo prazo”, explicou Adriana.
É necessário criar uma cultura de patrocínios sustentáveis para os festivais brasileiros serem vistos como investimento e não como uma “moda passageira”
Para que os festivais de cultura negra, LGBTQIA+ e com foco em sustentabilidade se tornem sustentáveis a longo prazo, é necessário um compromisso mais profundo de marcas e instituições em garantir a continuidade desses eventos, sem tratá-los como tendências passageiras.
Festival Feira Preta 2024. Foto: Evensen / @evensen_photograph_y / Eq. Nego Júnior
“Criar uma cultura de patrocínios sustentáveis exige que as empresas parem de enxergar esses eventos apenas como vitrines de marketing e passem a vê-los como investimentos estratégicos na transformação social e econômica do país”, afirmou Adriana Barbosa.
É fundamental também que a sustentabilidade desses eventos não dependa apenas do apoio de marcas, mas também de políticas públicas consistentes, de público engajado, de uma classe artística engajada.
No caso da Feira Preta, o evento tem buscado diversificar suas estratégias apostando em diferentes segmentos de captação: parcerias institucionais, bilheteria, experiências imersivas, licenciamento de produtos e venda de serviços criativos. Já a Batekoo também trabalha com festas e com uma franquia educacional, que forma jovens pretos gratuitamente para o mercado da produção cultural.
Também é preciso ver os festivais como investimento a longo prazo. O tempo de maturação de um festival, para consolidar público, impacto e relevância, nem sempre condiz com a pressa de investidores, que buscam retornos rápidos e métricas superficiais de engajamento, mas pode ser exponencial a longo prazo.
“A gente tá aqui reivindicando migalha, sabe? Um espaço no país em que 56% das pessoas são pretas e que nem metade disso tem essa cultura, sabe? A gente tá tentando levar pro nosso festival pessoas que não vão para outros festivais. A gente não tá querendo fazer mais um festival da Batekoo, não é mais um festival. A gente tem um público alvo, a gente tem uma comunidade. Então quando a galera tira a verba não está tirando só da gente, mas de todo o movimento preto que está construindo essa cultura no Brasil”, frisou Maurício Sacramento.
Entrevista concedida à jornalista Nathalia Pádua, do Mapa dos Festivais
A ilustração da abertura desse artigo é da lavra da artista gráfica Rebecca Hendin
