“Projetar para a pessoa idosa é muito mais do que seguir normas. É mudar vidas”

“Projetar para a pessoa idosa é muito mais do que seguir normas. É mudar vidas”

O frase do título é da arquiteta mineira Flavia Ranieri, especialista em Geroarquitetura, um novo conceito que começa a ganhar força no Brasil, ao somar os esforços da Arquitetura com a Gerontologia  (ciência que estuda o processo do envelhecimento em suas diferentes fases) para projetar ecossistemas sustentáveis e inclusivos voltados ao público 50+. Assim como as outras especialidades da arquitetura (hospitalar, comercial, urbanismo, paisagismo etc.) a Geroarquitetura  revela-se um novo campo de trabalho a ser explorado, com recursos e ferramentas que promovam o  conforto,  segurança e  independência do sênior.

“Quanto mais estudo sobre o envelhecimento, mais compreendo que o olhar precisa ser mais amplo. É necessário considerar as especificidades que os anos vividos nos trazem, mas de forma integrada, em um contexto intergeracional e em conjunto com a sociedade”, justifica a arquiteta. Nesta entrevista ela fala sobre inovação, dificuldades e benefícios  quando se busca soluções adequadas para o bem-estar e a qualidade de vida da pessoa idosa.

 O que é a Geroarquitetura? Ela pode ser definida como uma nova especialidade da arquitetura, criada a partir da associação com a gerontologia?

A Geroarquitetura surgiu da necessidade de se encontrar soluções de arquitetura que compreendessem melhor as características e desafios durante o processo de envelhecimento, em relação aos ambientes construídos. Com a mudança da pirâmide etária e envelhecimento da população, muitos arquitetos estão se interessando e estudando mais profundamente o tema para oferecer soluções mais adequadas ao público 50 +.

Na busca da longevidade saudável, como a Geroarquitetura pode atender as demandas específicas da população 50+?

O envelhecimento ocorre de forma gradual e suas necessidades vão mudando ao longo desse processo. O primeiro ponto em que os sêniores buscam soluções é em relação ao conforto. Deixar a vida mais fácil e leve, sem perder de vista a questão estética. A segurança chega em seguida, quando se observa a busca por soluções que garantam sua independência por mais tempo, momento em que a prevenção ganha relevância. A preocupação com a acessibilidade dos ambientes, no entanto, só costuma aparecer quando algo acontece, seja com o próprio 50+ ou com alguém de seu convívio próximo. Na Geroarquitetura nós trabalhamos todos os itens de forma equilibrada e gradual, mas sempre tentamos conscientizar as pessoas sobre a importância da prevenção, acessibilidade e segurança física, sem perder de vista a segurança emocional.

Quais as necessidades mais urgentes apresentadas por esse público para que a acessibilidade arquitetônica realmente cumpra o seu propósito?

Sabemos que, aplicar simplesmente a norma de acessibilidade (NBR9050/2020) não é suficiente para atender aos desafios enfrentados pelos sêniores. Por isso temos que considerar que não só os itens básicos de segurança estão sendo utilizados para que não ocorram acidentes (pisos antiderrapantes, apoios e corrimãos, caminhos livres de obstáculos e sanitários adaptados).

Analisamos também outros recursos, para que a pessoa consiga seguir sua rotina da forma mais independente e autônoma possível. Aqui devemos pensar em circulações e portas amplas, espaços para descanso e ambientes organizados.

 Na etapa seguinte, avaliamos as questões voltadas à qualidade do ambiente, como o conforto térmico, acústico, luminotécnico e ergonômico para que o usuário não seja prejudicado e tenha uma qualidade de vida adequada. Verificamos, por exemplo, a necessidade de luminárias de reforço, se há boa circulação do ar, se o ambiente é úmido e que pode causar doença, a altura de acesso aos armários são alguns itens observados.

Precisamos considerar ainda que as pessoas são diferentes, o que requer soluções diversas em relação à ergonomia. Cadeiras, sofás e camas com alturas adequadas podem ter medidas distintas. Sentar-se com os pés totalmente apoiados no chão é uma referência importante. Por isso incluir o usuário no processo de decisão é fundamental.

E nunca esquecer que a arquitetura também deve contemplar a convivência social, criando ambientes que estimulem a interação e a inclusão. A acessibilidade urbana também entra em questão aqui, como a análise do entorno e dos hábitos das pessoas.

 

Banheiro no Elissa Village foto do arquivo pessoal de Flavia RanieriO que levar em conta na hora de projetar para as pessoas idosas? A Geroarquitetura faz um estudo sobre as condições inerentes a esse público, principalmente com o avanço da idade, quando se observa a mobilidade reduzida, audição e visão comprometidas, limitações cognitivas, por exemplo?

Sim, a Geroarquitetura parte de um estudo aprofundado das condições associadas ao envelhecimento. Me lembro que quando fiz a Pós-Graduação em Gerontologia no Einstein eu havia colocado uma meta: a cada desafio enfrentado pelas pessoas idosas eu deveria encontrar, pelo menos, três soluções arquitetônicas para minimizar ou solucionar o problema. Então em aulas sobre declínio da visão, pensava em soluções de iluminação, sinalização gráfica, cores. Na de declínio auditivo já partia para soluções acústicas, posições de mesas e mobiliário. E assim, com cada um dos itens estudados. Agora, com quase dez anos de formada e muito estudo ininterrupto, o leque de opções e ferramentas que podemos tirar partido se ampliou muito. E isso eu tento passar para outros profissionais nas aulas que dou nos cursos de pós-graduação em gerontologia e geriatria.

É fato que, sem acessibilidade não há inclusão. E, no momento em que o combate ao idadismo e a propagação de temas voltados à inclusão social, de que forma a Geroarquitetura contribui para gerar impacto positivo e promover uma transformação?

A Geroarquitetura é uma ferramenta essencial no combate ao idadismo, pois valoriza a experiência e a dignidade das pessoas idosas. Espaços bem projetados garantem que todos possam participar ativamente da sociedade, promovendo independência e pertencimento. Além disso, a criação de ambientes inclusivos reforça a conscientização sobre a importância da diversidade etária e estimula a convivência intergeracional.

Quebrar o estereótipo da pessoa idosa como frágil e debilitada começa em ter uma sinalização de vaga, que ao invés de mostrar uma pessoa com bengala, mostra uma pessoa com o símbolo de 50+ ao lado. É ter mobiliário que possa atender a todos, tanto para um jovem em cadeira de rodas, como para crianças ou pessoas com mobilidade reduzida. Não precisa falar que é para o sênior. Ambientes adequados se tornam inclusivos a todos, até ao sênior. Precisamos começar por não reforçar os estereótipos nos espaços construídos.

Em que tipo de empreendimento a Geroarquitetura pode ser aplicada, aliando quesitos técnicos de segurança, autonomia e conforto, sem abrir mão do design?

A princípio as pessoas sempre pensam em hospitais, Instituições de Longa Permanência para Pessoas Idosas (ILPI), residenciais sênior, Sênior Livings e se esquecem que a vida da pessoas idosas é muito mais ampla que apenas a moradia. Elas frequentam museus, bancos, padarias, viajam e trabalham. Então eu diria que TODOS os empreendimentos devem ser pensados com um olhar de Geroarquitetura.

Quais os benefícios da Geroarquitetura para o consumidor sênior? De que forma esse conceito afeta a economia, colaborando para intensificar o poder de compra e venda?

Para o consumidor sênior, a Geroarquitetura proporciona maior autonomia, segurança e qualidade de vida. Espaços adaptados também permitem que idosos permaneçam em suas casas por mais tempo, reduzindo custos com saúde e assistência. Do ponto de vista econômico, o mercado sênior é um dos que mais cresce, impulsionando setores como o imobiliário, de mobiliário e de tecnologias assistivas (recursos e serviços utilizados por pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida para se tornarem mais independentes e incluídas na sociedade).

Quais as principais dificuldades encontradas na Geroarquitetura para adequar/adaptar os espaços e instalações e assim torná-los mais funcionais e acessíveis?

A maior dificuldade sob o ponto de vista dos fornecedores de soluções para Geroarquitetura é a falta de conhecimento sobre o tema. A rede que compõem a construção civil ainda possui uma visão míope e estereotipada em relação ao mercado prateado. Se eu tivesse que elencá-las seriam:

  • A falta de ciência do volume de pessoas idosas no Brasil e o tamanho do mercado prateado.
  • O desconhecimento técnico sobre essa etapa de vida.
  • A falta de entendimento da diversidade do público maduro. Falta escutar o público sênior.
  • O desconhecimento de seus desejos, necessidades, hábitos de vida e de compra.

Sob o ponto de vista da pessoa idosa, muitas vezes encontramos a resistência a mudanças e ao reconhecimento de um processo de envelhecimento. Soluções com design com caráter hospitalar ou associados apenas a questões funcionais, contribuem para a adoção de ferramentas de segurança.

Recepção Elissa Village foto do arquivo pessoal de Flavia Ranieri 1Uma boa estratégia, nesses casos, é sempre envolver o usuário na escolha das peças e buscar aquelas que tenham a ver com o seu estilo de vida e personalidade. Quando eles fazem a escolha e decidem por si só, eles se apropriam das soluções e isso fortalece a sensação de independência e autonomia, tornando mais fácil o processo de adoção.

Quais as coordenadas  que você sugere para o profissional de arquitetura que queira se especializar na Geroarquitetura?

Recomendo que o profissional busque formação em gerontologia e cursos especializados em Geroarquitetura. A experiência prática em projetos voltados para o público sênior também é fundamental. Além disso, é essencial manter-se atualizado sobre inovações tecnológicas e normativas de acessibilidade. Tenho um grupo de WhatsApp chamado "Comunidade Flavia Ranieri" onde reúno arquitetos e empreendedores da área e falamos exclusivamente sobre Geroarquitetura. A ideia é divulgar os conceitos e espalhar conhecimentos. E assim caminhamos, em passo de formiguinha. Já contamos com 220 pessoas. É uma grande vitória. Quem quiser participar, deve enviar mensagem pelo Instagram @flaviaranieri

 

Empreendimentos projetados sob a visão da Geroarquitetura

Flavia Ranieri desenvolveu o projeto de interiores do Elissa Village, a primeira ILPI cinco estrelas do Brasil, inaugurada em 2020, que alia conforto, segurança e sofisticação. O residencial fica na cidade de Campina Grande do Sul, região metropolitana de Curitiba. Nesse segmento destaca-se também o novo conceito arquitetônico do Terça da Serra, a maior franquia nacional de ILPIs, no intuito de promover acolhimento com design acessível. Atualmente com 150 unidades espalhadas pelo país. Em fase de desenvolvimento.

O Projeto BIOOS é um residencial sênior inovador, localizado em Curitiba. O empreendimento prioriza a autonomia dos moradores com espaços planejados para promover convivência e bem-estar. Flavia Ranieri é a responsável pelo projeto de interiores de toda a torre residencial. O lançamento é previsto para o 1º. semestre de 2026.

Na área de design de produtos, a arquiteta desenvolve peças funcionais, mas que se afastem do caráter hospitalar. Um exemplo é a linha de barras de apoio para acessibilidade, criada para a marca Deca, trabalho premiado na mostra CASACOR, em 2023.

Flavia Ranieri é graduada em arquitetura e urbanismo pela UFMG, e especializada em Gerontologia pelo Albert Einstein. É professora convidada nos cursos de pós-graduação em Gerontologia e Gestão de Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPI) do Albert Einstein e no curso de pós-graduação em Geriatria do Sírio Libanês.

@flaviaranieri

 

Angélica Soller

Autor: Angélica Soller

Sobre o/a Autor(a) Angélica Soller é jornalista e relações públicas, proprietária da Angélica Soller Comunicação. Escreve sobre assuntos relacionados à longevidade saudável, empreendedorismo sustentável e “cases” de superação que sirvam de exemplo para transformar e fazer a diferença


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