O setor de comunicação, em geral, e o segmento de jornalismo, em particular, nunca viveram tempos tão difíceis quanto o atual. Do caótico Afeganistão ao superdesenvolvido Estados Unidos, passando por diversos países da América Latina, os profissionais de comunicação vêm pagando um preço bastante elevado para fazer o seu trabalho. Muitos, inclusive, com a própria vida. Afinal, se a notícia não é boa ou não favorece o indigitado, a culpa é do mensageiro!
Mas as inúmeras dificuldades sempre fizeram parte do dia a dia dos profissionais de comunicação. Nos primórdios da colônia, vivemos a inusitada situação de ver o primeiro jornal brasileiro proibido de ser impresso e circular por aqui. O Correio Braziliense, de Hipólito José da Costa, surgiu em 1808, na Inglaterra, e lá circulou até 1822 empunhando bandeiras como a liberdade de imprensa, em um país no qual o monopólio da informação cabia à Coroa Portuguesa.
Decorridos 213 anos, vivemos em um mundo cada vez com menos fronteiras e no qual um átimo de segundo é suficiente para que as informações se espalhem por todo o planeta. Informação que nem sempre é sinônimo de conhecimento! Afinal, a mesma rede que facilita a troca de informação e a obtenção de conhecimento é aquela utilizada para desinformar (Brexit), justificar limpezas étnicas (extermínio dos rohingyas, em Mianmar) e atentar contra a saúde pública (COVID-19).
É neste contexto que ganha cada vez mais importância o papel da mídia independente como um espaço de contranarrativa ao discurso hegemônico. Tanto em relação à imprensa de mainstream, quanto aos porta-vozes do establishment político e econômico. Especialmente por sua capacidade de amplificar as vozes de comunidades periféricas, usualmente silenciadas ou que têm suas vidas ou fatos relacionados ao seu dia a dia contados a partir de uma perspectiva que mistura demofobia e racismo institucional.
Essas vozes do jornalismo, e da comunicação em geral, têm se mostrado ainda mais potentes em tempos de pandemia, ao funcionar como a primeira instância de disseminação de informação e conhecimento. Da prestação de serviços à agenda cotidiana, o carro de som, o repente, o rap, a faixa de rua, as rádios comunitárias e os sites noticiosos têm cumprido um papel relevante na vida de milhões de brasileiros.
Algumas dessas experiências e vivências serão contadas por comunicadores, jornalistas, acadêmicos e artistas entre 1º e 8 de outubro no FALA! - Festival de comunicação, culturas e jornalismo de causas. O evento realizado por quatro portais independentes de notícias - Alma Preta, Marco Zero Conteúdo, Ponte Jornalismo e 1 Papo Reto - chega à segunda edição trazendo 3 dias de debates e uma semana de cursos, nos quais o fazer jornalístico e a comunicação serão analisados nos mais diversos aspectos.
Além das mesas de debate, reunindo comunicadores de diversas etnias e baseados em muitas regiões do Brasil, da Venezuela e da Colômbia, o FALA! contará com uma série de oficinas. A programação (veja no final do texto) será transmitida, ao vivo, pela rede do Sesc Avenida Paulista, parceiro do evento.
Alguns dos participantes das mesas de debate
Para antecipar alguns pontos que estarão em discussão, 1 Papo Reto ouviu representantes dos portais de notícias que idealizaram o evento:
Qual a importância do Jornalismo de Causas no contexto atual, marcado por constantes ameaças à democracia e à liberdade de expressão?
Láercio Portela, cofundador da Marco Zero Conteúdo – O Jornalismo de Causas assume um papel vital neste momento em que o Brasil e o mundo atravessam um período de recrudescimento do autoritarismo. Sem democracia não existe liberdade de expressão. Mas, aqui, é preciso pontuar que não falamos de um fazer jornalístico que se esconde atrás do muro da falsa neutralidade. Afinal, as empresas jornalísticas sempre defenderam posições e interesses específicos, mesmo que não digam isso.
O Jornalismo de Causas é aquele que está comprometido e atento à diversidade de corpos, de culturas e de territórios existentes no Brasil. Fiscalizando as violações aos direitos humanos e ao território, especialmente no que se refere às populações historicamente atacadas pelo establishment. Para retratar esse universo, é importante que não se tenha medo de nominar as coisas da forma como elas são: racismo, sexismo, homofobia... e chamar a extrema direita pelo que é.
Qual o papel das manifestações artísticas em um contexto de disputa de narrativas e de desinformação sistêmica?
Antonio Junião, cofundador da Ponte Jornalismo – Historicamente, os movimentos sociais, culturais e artísticos sempre foram resistência ao modelo hegemônico de poder, principalmente aqui na América Latina, onde as raízes da estrutura colonial estão fincadas até hoje. Raízes que hierarquizaram a sociedade usando a violência de raça, de gênero e de classe como base para a criação de um território para poucos, sem igualdade e equidade de direitos. Nesse sentido, a desinformação sempre foi usada como um dos instrumentos de manutenção dessa lógica perversa de dominação e de apagamento de corpos e conhecimentos não-brancos.
Somente aqui no Brasil temos mais de 200 culturas e línguas indígenas diferentes. Onde essas pessoas estão? Quais contribuições podem nos trazer? Negros escravizados que chegaram ao país de forma violenta já eram arquitetos, engenheiros, artesãos, agricultores, mineradores. Onde estão esses saberes? O que podemos aprender com esses povos? Eles ocupam espaços públicos, estão na academia, mas onde estão suas vozes? Difícil esperar essas respostas do poder hegemônico, então cabe a movimentos sociais, artísticos e culturais trazerem essas provocações à tona, questionando e tensionando o debate.
O jornalismo independente carece de recursos. Neste contexto, a rede Black Adnet surge como uma opção interessante de financiamento. O mercado publicitário já entendeu a importância da mídia independente?
Elaine Silva, sócia-diretora do Alma Preta – De fato, ao estruturarmos a rede Black Adnet, apresentamos para o mercado publicitário um jeito novo de seus clientes exporem sua marca além da chamada mídia tradicional. Podemos dizer que não é uma tarefa fácil fazer com que a rede chegue até os ouvidos dos grandes anunciantes. Isso porque ainda existe uma resistência muito grande em relação a esse novo jeito de fazer publicidade.
O nosso papel enquanto mídia independente é informar e ensinar as pessoas e, principalmente, o mercado publicitário que uma boa comunicação parte de quem vive e respira o território periférico. E, neste percurso de cerca de um ano, já podemos dizer que há uma resposta superpositiva quando o conteúdo publicitário é distribuído por veículos de comunicação que moram nesses territórios.
SERVIÇO:
O QUÊ – FALA! - Festival de comunicação, culturas e jornalismo de causas
QUANDO – de 1º a 8 de outubro de 2021
ONDE – redes sociais do Sesc Avenida Paulista youtube.com/sescavenidapaulista
QUANTO – programação gratuita. Para participar das oficinas é necessário se inscrever previamente a partir de 28/09, às 14h. (120 vagas)
Link para inscrições: https://inscricoes.sescsp.org.br/online/#/inscricao
PROGRAMA COMPLETO
A mesa de abertura do Festival, que acontece no dia 1º, às 19h, tem como tema “Como o jornalismo, a arte e a cultura podem colaborar na reconstrução desse mundo moderno que se encontra em ruínas?”. A fala inaugural fica por conta de Danilo Santos de Miranda, diretor do Sesc São Paulo. Participam desta conversa mediada por Laércio Portela, editor e cofundador da Marco Zero Conteúdo, a jornalista e pesquisadora Rosane Borges; Donminique Azevedo, jornalista e especialista em Raça, Gênero e Sexualidades; e a cantora, escritora e pesquisadora Fabiana Cozza.
Dando continuidade à programação, o festival apresenta o painel “Jornalismo e democracia: ou vai ou racha!”, com a presença das jornalistas Cristina Serra, da Folha de São Paulo (SP), Ana Paula Rosário, do canal Corpo Político e Cecília Olliveira, do The Intercept (RJ). Com mediação de Pedro Borges, cofundador e editor chefe do Alma Preta Jornalismo, a conversa acontece no dia 2, às 10h. Neste mesmo dia, às 15h, acontece a mesa “Jornalismo influencer: resistência narrativa nas redes com a presença de Samela Awiá, comunicadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib); Martihene Keila, jornalista e cofundadora do coletivo Sargento Perifa (PE) e Xico Sá, jornalista, escritor e colunista do El País Brasil. A mediação será do ativista e empreendedor Raull Santiago, do Perifa Connection.
Com mediação do jornalista Rosenildo Ferreira, de 1Papo Reto, a mesa “Quem vai financiar o jornalismo independente no Brasil” abre a programação do terceiro dia, com a participação da Daniele Moura, do Jornal Maré Notícias (RJ), Elaine Silva, do Alma Preta Jornalismo (SP), e Rogério Christofoletti, jornalista e professor da Universidade Federal de Santa Catarina, discutindo possibilidades de viabilização financeira para veículos engajados em causas.
No dia 3, às 15h, fechando a programação de debates, a mesa “Diálogos Sul-Sul” discute a importância das pontes entre os veículos latino-americanos com: Cesar Bartiz, do jornal El Pitazo da Venezuela, Alecsandra Matias de Oliveira, pesquisadora do Centro Mario Schenberg de Documentação e Pesquisa em Artes (ECA USP), e Alejandro Valdéz, comunicador visual, diretor e co-fundador do El Surti, do Paraguai. A mediação será de Jessica Tamyres dos Santos, editora de relacionamento da Ponte Jornalismo.
CURSO – “Jornalismo, o mundo moderno e as novas formas de mediação”, que será ministrado pela professora pós-doutora Rosane Borges de 5 a 8 de outubro. O curso será dividido por temas em quatro módulos, tendo dois convidados por tema para discutir experiências e vivências dentro do campo da comunicação.
Módulo 1: Diversidade, Pluralidade e Inclusão: requisitos para um jornalismo democrático. Facilitadoras: Jornalistas Luciana Barreto e Flávia Lima;
Módulo 2: Ler e Dizer o Mundo de Forma Minimalista: as camadas do invisível e as narrativas de mulheres negras. Facilitadoras: ativista Neon Cunha e Alane Reis, jornalista da Revista Afirmativa;
Módulo 3: Jornalismo e Novas Formas de Enquadramento: as experiências dos povos originários na captura e transmissão de imagens. Facilitadoras: comunicador Xavante Cristian Wariu, e a artista Katu Mirim - rapper, cantora, compositora, atriz e ativista da causa indígena.
Módulo 4: Música, Literatura e Dança: trançado de códigos que informam sobre o mundo. Facilitadores: cantora Fabiana Cozza e compositor Salloma Salomão
