Tenho notado, ora com surpresa, ora com entusiasmo, o conceito de disrupção se popularizar, sobretudo nas rodas das corporações e nos conceitos relacionados à inovação e negócios. Em relativamente pouco tempo, já existe vasta literatura sobre o tema. A internet está explodindo de cursos, consultorias, mentorias e palestras sobre. Mas o ponto que gostaria de trazer vai além do mercado. É possível criar uma cultura de inovação disruptiva na gestão de políticas públicas no campo da cultura? Como criar memória e mecanismos para a modernização do conjunto de legislações que tratam da cultura?
Vejamos: a Lei nº 8.666/93 regulamenta as normas para licitações e contratos da Administração Pública e isso inclui as contratações artísticas. Nada de novo, afinal a lei é de 1993. E é justamente o novo que precisa vir, não apenas para que a legislação esteja alinhada à realidade, como para que (e isso é de fundamental importância) a sua aplicação ou as possibilidades de interpretação sobre ela não sigam reforçando desigualdades estruturais nas políticas públicas culturais.
Vamos de exemplo! Certa vez, quando estava à frente da Subsecretaria de Cidadania e Diversidade Cultural do Distrito Federal, recebi um parecer jurídico condicionando a contratação de uma contadora de histórias à apresentação de um documento de comprovação de profissionalismo. Segundo o parecer, seria necessário apresentar um registro profissional reconhecido por um órgão indiscutivelmente reconhecido, digamos assim. De preferência acadêmico. Algumas das outras possibilidades apresentadas como exemplo foram: carteira da Ordem dos Músicos (OMB), Documento de Registro Técnico (DTR), e vínculo associativo ou declaração do Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões (SATED). Sem isso, os 20 anos de trajetória de uma das griôs mais representativas da cidade não seriam suficientes para viabilizar sua contratação pela Secretaria de Cultura.
No passado, para tentar solucionar essa questão (que muitos consideram, inclusive, uma interpretação limitada da lei) e contratar grupos de capoeira, assim como outras manifestações artísticas ligadas às religiões de matriz africana, a Secretaria de Cultura do DF investiu na interlocução de mestres de capoeiras e ogãs com a OMB. A ideia é que pudessem ter a tal comprovação de profissionalismo ainda que não fosse exatamente confortável para um ogã, que toca para o seu orixá, ou a mestra de capoeira, que já foi reconhecida por sua comunidade, precisarem dessa chancela específica para atuar. Além disso, foi ignorado no primeiro momento o ônus da taxa de anuidade e a burocracia a que deveriam estar submetidos esses agentes culturais em médio e longo prazo, apenas pela iminência de serem contratados alguma vez. Imprescindível perceber como a interpretação reduzida do que reza a lei pode reforçar abismos e impactar negativamente os grupos culturais historicamente excluídos.
NA LABUTA: conjunto vocal formado por quebradeiras de coco, do Maranhão A Lei nº 8.666/93 permite contratar uma/um/ume artiste, sem fazer um processo de licitação, considerando que não há como tratar a contratação artística como se trata a compra de sacos de cimento ou a escolha de uma empreiteira que viabilizará uma obra, por exemplo (ufa!). Por um lado, há que se reconhecer que essa foi uma inovação substancial à época. Mas isso não exclui a urgência de um salto significativo para que as contratações artísticas da esfera pública não se concentrem nos profissionais consagrados pela indústria, fortalecendo-a em detrimento da valorização do patrimônio imaterial e da garantia dos direitos de produção e acesso.
Se houver produtores e artistas me lendo agora, sobretudo aqueles e aquelas que não estão no mainstream, é possível que alguns tenham visto suas contratações nunca serem efetivadas pelo que consideraram como “burocracia”, “panelinha” ou “má vontade do gestor”. Ocorre que cada um dos incisos do Art. 25 (o que aborda a questão da contratação artística por inexigibilidade) parece exigir um grande exercício de reflexão e participação social para uma mudança substancial. O que significa e quais são os e as artistas consagrados pela “crítica especializada ou pela opinião pública”? Quais os tipos de comprovações de profissionalismo possíveis e que considerem, também, outros tipos de chancelas não hegemônicas e nem por isso desimportantes? Que artistas, em 2021, possuem empresários exclusivos? Tudo isso está expresso na lei e exige atenção dos gestores que, muitas vezes, por insegurança jurídica, adotam os modelos mais conservadores, elitistas e rigorosos na lida com as contratações das culturas populares.
Não é difícil compreender como se chegou em cada um dos incisos e nas respectivas obrigatoriedades da lei. Como já mencionado, ela, de fato, trouxe inovação. No entanto é necessário ir além. Afinal, o ano é 2021, quando as pautas da inclusão e da diversidade finalmente são, ou deveriam ser, consideradas ativos indispensáveis para o desenvolvimento humano, cultural, político, social e econômico em todas as dimensões; quando a má gestão na condução da pandemia da Covid-19 acentuou as desigualdades; quando a revolução digital foi acelerada e criou outros formatos de prestação de serviços e modelos de contratação; quando, inclusive, já temos mundo afora bons exemplos de laboratórios e departamentos de inovação funcionando em pleno vapor no setor público para aprimorar e/ou revolucionar serviços e processos organizacionais, impulsionar e mudar a forma de fazer participação social, subsidiar transformações radicais nos processos e criar novas tecnologias. Essas e outras mudanças precisam, necessariamente, fazer a administração pública, os governos e também a legislação brasileira se reinventarem sob muitos aspectos.
CULTURA POPULAR: capoeirista tem de ter registro profissional?Volto a chamar atenção para a necessidade de avançar e criar uma cultura disruptiva na gestão pública e na legislação da cultura, como continuidade de um processo potente que se iniciou há pouco mais de uma década. Obviamente, e felizmente, existe um mundo de outras possibilidades ligadas ao empreendedorismo, ao mercado e às contratações privadas. Nem por isso o recurso público da cultura pode ser concentrado, excludente ou elitista.
Pode ser que, à essa altura, você esteja pensando que a ideia de criar uma cultura de inovação disruptiva no setor público seja um tanto quanto romântica, considerando a atual conjuntura do Brasil, onde política pública não é prioridade e onde sequer existe uma pasta específica para a cultura. Mas isso também passará e precisaremos estar preparades.
