A complexidade, um traço marcante no desenho da sociedade brasileira, se reflete em diversas estatísticas. A começar pela concentração de renda. Enquanto 69 brasileiros figuram na lista de bilionários globais, editada pela Forbes, 49 milhões moram em lares sem acesso a saneamento básico, o que equivale a 24% de toda a população, de acordo com dados do IBGE. Mais. De acordo com a mesma fonte, 642 milhões de pessoas enfrentam algum nível de insegurança alimentar. Estas disparidades são mantidas e agravadas por uma série de mecanismos que perpetuam a exclusão de uma camada relevante da população, com destaque para os afro-brasileiros, que totalizam 56% do contingente populacional.
Algumas dessas complexidades foram destacadas no Painel Afrofuturismo e Investimento Social Privado, que reuniu Nayana Cambria, gerente de portfólio do Fundo Nest, e Jorge Júnior, fundador e CEO da fintech Trampay, sob a mediação da coordenadora de programas do GIFE (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas), Thaís Nascimento. “O recurso (financeiro) para equidade racial já não existe mais. George Floyd passou”, disse Nayana, ao explicar a dificuldade dos afroempreendedores para acessar o chamado Investimento Social Privado (ISP).
A fala em tom de desabafo também encontra eco na lida diária dos gestores de Organizações da Sociedade Civil (OSC) que, em geral, atuam na base da pirâmide social e financeira. Este contingente, formado por 782 mil organizações, tem sido “escanteado” pelos grandes filantropos brasileiros, muitos dos quais despontam na lista da Forbes. “O chamado Pacto da Branquitude e o racismo institucional continuam influenciando nas decisões de liberação de recursos e na aprovação de projetos”, destacou Thaís.
Nayana (Fundo Nest), Thaís (GIFE) e Jorge Júnior (Trampay) falaram sobre acesso a filantropia e venture capital
É neste contexto que ganha ainda mais importância a presença de profissionais de origens diversas atuando nos escalões decisórios de empresas e instituições, segundo pontuou Nayana. Na ancestralidade africana, esse tipo de postura integra a filosofia ubuntu (eu sou porque nós somos). “Na posição que ocupo, hoje, tenho a capacidade de ser uma agente de transformação e de mudanças.” De fato. Nos últimos três anos, ela ajudou a incluir 18 empresas lideradas por afrobrasileiros e focadas na bioeconomia amazônica, responsáveis por 17.627 empregos diretos. No total, os empreendedores receberam aporte de US$ 500 mil (cerca de R$ 3 milhões).
Tecnologia ajudando a furar bolhas
E foi exatamente a partir de um lugar de carências e da necessidade de gerar bem-estar e prosperidade de forma compartilhada que surgiu a Trampay, comandada por Jorge Júnior, uma estrela em ascensão no meio financeiro. A fintech já emprestou cerca de R$ 250 milhões para profissionais autônomos, com destaque para motoboys e mototaxistas. “Movimentamos um total de R$ 1 bilhão desde a abertura do banco em 2020”. Nascido em Recife e criado na periferia de Brasília, ele defende uma postura de forte autonomia em relação aos financiadores em geral. “O capital filantrópico possui um viés de `favor´ que sempre rejeitei”, diz. “Por isso, que desenhei meu modelo de negócio focado na independência e na sustentabilidade”.
Flavus Regis, da CryptoRastas apresentou as inovações do mercado de NFTs
Não foi apenas a inovação da mais bem-sucedida fintech financeira comandada por um afro-brasileiro que deu o tom no segundo e último dia do Festival Afrofuturismo – Ano VI, outro destaque em meio a dezenas de palestras, workshops, talks e ativações de marca foi a participação dos afro-brasileiros na Web 3.0, a base para o mercado de cripto ativos. Uma das mais conhecidas é a CryptoRastas, plataforma de NFT que tem por base a cultura Reggae. “Nossa plataforma já conta com 3,7 mil membros, incluindo o rapper americano Snoopy Dog, a cantora e produtora musical Preta Gil e o skatista Bob Burnquist”, destaca Flavus Regis, líder de marketing e community manager na CryptoRastas.
Apaixonado pela cultura rastafari, o produtor musical, DJ e pesquisador, conta que a plataforma também mantém uma grande interação com seus clientes no mundo analógico. Especialmente apostando em wearables – itens colecionáveis exclusivos –, assinados por personalidades. A lista inclui shapes de skate assinados por ícones como Adelmo Jr., saídas de praia, calçados, bonés e (é claro!) seda para enrolar um baseado. “Os holders de nossos cards têm direito a um grande número de benefícios e recompensas, o que nos ajuda a manter a comunidade sempre ativa”.
Ele diz que a próxima tacada da empresa é o lançamento de uma memecoin (junção das palavras meme e coin) batizada de $1LUV. “As memecoins não são brincadeiras de internet. Mas sim um negócio baseado no poder real das redes sociais, e descentralizado. Ou seja, não tem bancos na jogada”, explica. De fato, esse segmento vem crescendo e, hoje, o Brasil já desponta como o segundo mercado de memecoins, atrás dos Estados Unidos.
Paulo Rogério, cofundador da Vale do Dendê apresenta seu novo livro
“Um outro Futuro...”
As idiossincrasias, dilemas e complexidades da sociedade brasileira estão aí desde sempre. Se é certo que sem o racismo institucional o país poderia ter cumprido o papel de País do Futuro, título do livro do judeu-austríaco Stefan Zweig que se tornou um epíteto nacional, também é correto dizer que seus habitantes, em geral, e os afrodescendentes, em especial, sempre encontraram formas de driblar as adversidades. Fizeram isso por meio do desenvolvimento ou apropriação de inúmeras tecnologias ancestrais com apenas um objetivo: ajudar a fazer do Brasil um país mais fraterno e justo.
É nessa linha que navegam os 28 artigos e crônicas reunidos no livro Um Outro Futuro Ainda É Possível?, escrito pelo consultor e estrategista em diversidade Paulo Rogério Nunes. Cofundador da Vale do Dendê, criadora do Festival Afrofuturismo, ele aposta em um tom otimista-realista para falar do futuro. “Em meu primeiro livro, Oportunidades Invisíveis, eu destaquei a história de homens e mulheres que conseguiram enxergar além do óbvio e criaram negócios de sucesso, tendo a diversidade como um grande ativo”, conta. “Agora, uso o ponto de interrogação no título como forma de chamar o leitor para ser parte da construção desse futuro mais diverso e inclusivo, além de destacar o papel da tecnologia nesse processo”.
O lançamento da obra fechou a sexta edição do Festival, que transformou o Pelourinho, local icônico do Centro Histórico de Salvador, em uma espécie de Wakanda, a cidade mística e super hightech no coração da África, celebrada por Pantera Negra, o herói criado pela Marvel. De acordo com os organizadores, a versão “Wakanda soteropolitana” foi fruto de muita dedicação e de um trabalho de fôlego, que envolveu a interlocução com agentes públicos e privados, além de costuras internacionais com as embaixadas e os governos de Cabo Verde, Estados Unidos, França e Gana.
Ana Cristina (de vestido) destaca a parceria do Festival com a comunidade do Pelourinho / Foto: Victor Fernandez
“Começamos a pré-produção do Festival em janeiro”, conta a gerente de operações da Vale do Dendê, Ana Cristina Araújo, destacando que na última fase foram contratados 150 profissionais, diretamente, resultando numa geração de 500 postos de trabalho, sempre tendo como norte a filosofia ubuntu. “Nosso time é composto de moradores e empreendedores que atuam na região”.
E por falar em futuro, ancestralidade e desenvolvimento local, antes mesmo da sessão de autógrafos de seu livro, o cofundador da Vale do Dendê apresentou o mote da edição 2025, do Festival: Ancestrais do Futuro (na foto que abre esta reportagem). “Queremos trazer para o debate o conceito de futuridade, que é desenvolvido nos estudos da pesquisadora Grazi Mendes”, concluiu.
ACOMPANHE NOS VÍDEOS ABAIXO O QUE ROLOU NO FESTIVAL
Saiba mais sobre o Festival Afrofuturismo
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*O jornalista viajou a Salvador a convite da Vale do Dendê e do Sebrae-BA
*O site de notícias 1 Papo Reto é media partner do Festival Afrofuturismo
Importante: Texto atualizado às 18h26 de 3/12, para corrigir informação sobre a Bob Burnquist
