Entretenimento letrado é a aposta da CultneTV, que roda no streaming da Samsung

Entretenimento letrado é a aposta da CultneTV, que roda no streaming da Samsung

É impossível falar de cultura negra, agitação cultural e Movimento Black, no Brasil, na década de 1970, sem incluir a participação de jovens moradores dos subúrbios do Rio de Janeiro. Afinal, a região não apenas concentrava a maior fatia de afro-brasileiros da cidade, como também era (e continua sendo!) o berço de manifestações importantes com repercussão nacional e internacional. É evidente que tudo começou com o samba e seus derivados: partido alto e pagode. Mas, não parou por aí. A soul music, o funk e tudo mais que veio a ser conhecido como Música Preta Brasileira têm raízes profundas no subúrbio.

Parte dessa rica história, que aconteceu de forma espontânea e longe da mídia e dos departamentos de marketing das grandes empresas, poderia ter sido perdida não fosse a ação de pessoas chave neste processo. Uma delas é o engenheiro, produtor cultural, ativista e gestor em marketing Asfilófio de Oliveira Filho, mais conhecido como Dom Filó. Por meio da produtora Cultne, ele conseguiu reunir o maior acervo da América Latina sobre cultura negra.

São momentos importantes, como entrevistas com intelectuais do calibre da antropóloga Lélia Gonzalez, do fotógrafo Januário Garcia e da historiadora Beatriz Nascimento que, em geral, eram mais conhecidos nos Estados Unidos e na Europa. Tem também filmagens exclusivas enfocando a primeira visita de Nelson Mandela ao Brasil, em 1991, cenas de bailes black, onde a sua equipe de som Soul Grand Prix integrava o pelotão de elite, e muito mais. “São cerca de três mil horas de conteúdo reunidos a partir de 1980”, conta Dom Filó.

Dom filo CultneTV 1 papo retoOntem e hoje: Dom Filó ajudou a consolidar a cena Black Power / Fotos: divulgação

Material suficiente para dar o ponto de partida em sua nova empreitada: a CultneTV (Canal 2200), que pode ser acessada no streaming da Samsung TV Plus, dispositivo de acesso gratuito, instalado em todas os televisores vendidos pela sul-coreana, no Brasil. Dom Filó se mostra animado com a parceria, iniciada em 2023, e cuja estreia se deu em 20 de novembro, quando é celebrado o Dia da Consciência Negra: “Em 30 dias tivemos 2,3 milhões de acessos”, conta.

Em um mercado no qual as verbas de marketing se orientam fundamentalmente pelas métricas de desempenho, a medição de audiência sempre foi uma “pedra no sapato” para o desenvolvimento de iniciativas fora do mainstream. Ao se integrar à plataforma, Dom Filó passa a ter acesso a uma base formada por 15 milhões de aparelhos ativos. O que, em termos de potencial, corresponde a um público formado, hoje, por 41,8 milhões de telespectadores, levando-se em conta a média de 2,79 moradores por domicílio, calculada pelo IBGE. Sua meta, porém, é repetir o acordo com as demais provedoras do gênero, como o app Xumo, inserido nas TVs da também sul-coreana LG.

Sotaques nacionais - Acesso é importante. Produzir conteúdo, idem. Mas na feroz luta pela atenção do telespectador não basta estar na plataforma, seja ela qual for. É vital ter uma identidade marcante, que dialogue com os diversos brasis existentes dentro do Brasil. “Nossa entrada no streaming representa uma verdadeira revolução neste mercado. Afinal, somos a primeira TV a transmitir material cem por cento autoral e brasileiro, focado na comunidade afro”, destaca. Segundo o empreendedor e eterno ativista, para que essa revolução se sustente no longo prazo e opere mudanças ainda é preciso percorrer um longo caminho.

E essa trilha passa, necessariamente, pela incorporação de todos os brasis. Para dar conta dessa tarefa, a direção da CultneTV está articulando acordos com produtores de conteúdo. O primeiro deles foi assinado com a Negritar Filmes e Produções, empresa comandada pela cineasta Joyce Cursino, baseada em Belém. O mais recente se deu com a Paraná Afro, da Axé Produções, de Curitiba. Por sua vez, o conteúdo jornalístico é fornecido pelo site de notícias Mundo Negro, criado em 2001 pela jornalista Silvia Nascimento. “O sonho de ser uma `filial da BET´ (maior emissora focada na comunidade negra, dos EUA) deixou de fazer sentido”, explica Filó.

Entretenimento letrado CultneTV samsung 1 papo retoProgramação da CultneTV também pode ser vista pela internet

Ao lado da questão conceitual, existe ainda um aspecto de ordem prática. Ao mesmo tempo em que essas parcerias geram conteúdos diversos, e sem custo, para preencher a grade do canal 2200, garantem capilaridade e divulgação por meio do chamado boca a boca. Sem verba para investir em campanhas maciças de marketing, a estratégia desenhada por Filó consiste em posicionar a TV Cultne como uma plataforma de Entretenimento Letrado. Tanto para o telespectador quanto para o anunciante que tem a possibilidade de colocar em prática algumas de suas bandeiras definidas na política de ESG (acrônimo para meio ambiente, social e governança, da sigla em inglês).

O risco, aqui, é que o movimento antirracista, que se tornou quase que um mantra entre os pilares ESG de muitas empresas, perca espaço. “Não temos bola de cristal para antever o futuro. Mas posso dizer que essa é uma caminhada sem volta. O movimento negro está atento e repudia as ações de blackwashing. Na Cultne, nosso foco é a internacionalização dos conceitos de equidade racial e pluralidade, pregados desde a época do movimento Black Rio e Black Power”, diz.

Hoje, os 10 minutos de inserção comercial previstos a cada hora, são ocupados integralmente pela Samsung. Como o contrato prevê a divisão do espaço entre a gigante sul-coreana e o marketing da Cultne, a equipe liderada por Filó está negociando com agências e grandes empresas, além de participar de processos de fomento do audiovisual. “Ainda existem muitas barreiras para os empreendedores negros do audiovisual captar recursos. A grana continua concentrada nas mãos de poucos”, critica.

 

Leia também o depoimento concedido por Filó a 1 Papo Reto, em 2013:

“Com uma canção também se luta, irmão!”, parte 1 e parte 2